terça-feira, 5 de maio de 2009

MENDIGOS VENDIAM PONTOS NA CATEDRAL

Edward de Souza
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Estagiário do NP serve de cobaia e
quase é linchado
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A Praça da Sé é o eixo da cidade de São Paulo. Quem for à praça, vai ver o marco zero da cidade, bem em frente à Catedral. Na metade dos anos 70 parecia um albergue a céu aberto, uma visão do inferno, como se a cidade tivesse enfrentando alguma guerra civil ou algo do tipo. A quantidade de mendigos espalhados pela praça chegava a ser absurda. A maioria dos pedintes utilizava os jardins da praça como banheiro público, tomando banho no chafariz central e fazendo suas necessidades em qualquer canto, tornando certos pontos não muito agradáveis. Alguns deles usavam drogas. O mau cheiro imperava. Lázaro Campos, nessa época editor de polícia do Jornal Notícias Populares, recebia dezenas de reclamações de leitores pedindo providências. O jornal, chegado ao mundo do crime, não se importava muito com notícias assim, até que um telefonema chegou à redação denunciando a venda de pontos de mendicância na praça, principalmente próximo às escadarias da igreja, a preços absurdos. Falavam em milhões por um pequeno espaço para se esmolar. Assim que colocou o telefone no gancho, Lázaro virou-se para o meu lado e me passou as informações que havia recebido. Isso significava que eu estava escalado para ir à Praça da Sé em busca dos famosos pontos de mendicância e os responsáveis por eles. Jornalistas, de um modo geral, têm verdadeira fissura em entrevistar, reportar, fotografar, documentar moradores de rua. De preferência, em preto-e-branco. Arrisco uma interpretação: sem consciência profunda dos problemas sociais do país, enxergam o que salta aos olhos, visão superficial porque, inclusive, vários moradores de rua lá estão por motivos diferentes da pobreza, como drogadições em geral, desentendimentos familiares e problemas mentais. Eu tinha certa experiência, depois de desmantelar uma rede de falsos mendigos no ABC, cujo relato farei nesse blog em outra oportunidade. Bolei um plano para tentar entrar na rede de mendigos que negociavam pontos na Praça da Sé, mas iria precisar de ajuda. Expliquei ao Lázaro a idéia que tive. Teria que infiltrar uma pessoa com aparência de mendigo na Praça da Sé. Ficaria à distância com o Tarcisio Leite, fotógrafo, documentando e acompanhando toda a movimentação. Mas quem seria nosso mendigo? Não poderia ser alguém com cara de bonachão e bem nutrido, claro está. Enquanto pensava, voltei-me para a sala de arquivos do jornal. Um jovem, recém-contratado, recortava jornais para arquivar matérias às pastas. Era magro, na verdade, esquelético, barba preta cerrada e com olheiras profundas. Seria o mendigo ideal, mas como convencê-lo a aceitar a empreitada? Mostrei o rapaz ao Lázaro e ele logo se animou. Fomos os dois falar com ele. Tinha o apelido de “Carne-Seca”, ficamos sabendo. Estagiário ainda no NP, “Carne-Seca” ficou entusiasmado em saber que participaria de uma reportagem policial, pouco se importando com os riscos que certamente correria, caso sua verdadeira identidade fosse descoberta pelos mendigos. Combinamos sair por volta das 3 horas da madrugada. Lázaro providenciou roupas velhas e rasgadas e um chapéu para o nosso mendigo. As roupas ficaram largas, o que, ao invés de atrapalhar, acabaram ajudando a moldar o perfil de pedinte que pretendíamos infiltrar nas escadarias da Praça da Sé. Como medida de segurança, comunicamos a um delegado amigo nosso a reportagem que iríamos fazer, pedindo que ele deixasse, nas proximidades das escadarias da igreja, um investigador de plantão. Antes das 3 da manhã chegamos à praça ainda deserta e soltamos o “Carne-Seca”. Teríamos que ficar à distância, mendigos detestam jornalistas e fotógrafos, já perceberam? Sempre que um carro de reportagem se aproxima eles fogem como o Diabo da cruz. Se estão em bando, muitas vezes atacam, buscando afugentar os repórteres. Sempre foi assim. Fazia frio naquela manhã em São Paulo. “Carne-Seca” se enrolou num velho cobertor “sapeca-neguinho” e sentou-se no começo da escadaria da igreja, chamado ponto de elite pelos pedintes do local. Estendeu o chapéu, com as mãos trêmulas por causa do frio e também pela tarefa espinhosa que teria a cumprir pela frente. Eu e Tarcisio ficamos à distância, dentro do carro sem logotipo, que arrumamos para fazer a reportagem e não chamar a atenção dos pedintes, que, aos poucos, foram chegando. Eram mais de 5 horas da manhã e o movimento começou. Estava divertido ver que, a cada três pessoas que passava, uma atirava moeda no chapéu de “Carne-Seca.” Agachado atrás do carro, com teleobjetiva, Tarcísio fotografava os melhores lances. Mais de 7 horas da manhã. Movimento intenso na Praça da Sé. Bom lembrar que não havia metrô na época, apenas ônibus e táxis circulavam pelas imediações. O chapéu de “Carne-Seca” estava cheio. Como tinha saído o sol, ele atirou as moedas no cobertor e deu um nó, deixando livre o chapéu para novas ofertas. Tinha se transformado num autêntico pedinte nosso estagiário. Melhor não poderíamos ter encontrado. Minutos depois, eu e Tarcísio notamos que três mendigos esconderam nossa visão e gesticulavam energicamente com “Carne-Seca”. Não dava para ouvir, claro, mas podia se perceber que nosso mendigo estava em apuros. Levantou-se e saiu do lugar que ocupava. Um desses três mendigos tomou seu lugar. Sem saber o que fazer, “Carne-Seca” procurou um ponto à frente para se sentar. Não ficou nem 5 minutos e foi cercado mais uma vez. A coisa estava feia! Tarcisio não perdia um lance, fotografava tudo. Em fração de segundos, nosso mendigo desapareceu, com chapéu e cobertor. Gritei para o Tarcísio e corremos, eu, ele e o motorista do jornal, que largou o carro aberto, para tentarmos ver o que tinha acontecido com “Carne-Seca”. No caminho topamos com o investigador Gilberto Moraes, que estava acabando de chegar a mando do delegado amigo nosso para dar cobertura àquela reportagem. Correndo em volta da igreja, escutamos gritos abafados de “Carne-Seca.” Gilberto, o investigador, sacou o revólver. Correndo na direção dos gritos, encontramos nosso “pedinte” cercado por um bando de mendigos. Estava sendo sufocado pelo próprio cobertor. O investigador efetuou dois disparos para o alto, dispersando os mendigos que fugiram. “Carne-Seca” mal podia respirar. Estava roxo e por muito pouco, frações de segundos, não perde a vida. Depois de tomar uns dois copos de água e um cafezinho numa lanchonete da Praça da Sé, “Carne-Seca” contou que desde cedo estava sendo molestado pelos mendigos da área. De acordo com ele, cada ponto tinha um dono. Caso ele quisesse continuar a esmolar no local, deveria pagar de 3 a 5 milhões de cruzeiros, muito dinheiro naquele tempo, o suficiente hoje para comprar um carro de marca, zero quilômetro, ou até uma boa casa. Como nosso mendigo improvisado resistiu e continuou no local, foi arrastado pelo bando de pedintes “donos da igreja”, e só não morreu porque, como foi relatado, acudimos a tempo. Foi feito um Boletim de Ocorrência e a matéria publicada dias seguidos no Jornal Notícias Populares, com fotos. Os “donos da boca” desapareceram. Quanto ao “Carne-Seca”, foi contratado pelo jornal, escondeu-se no setor de arquivos e nunca mais quis servir de cobaia para reportagem nenhuma.
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*Edward de Souza é Jornalista e radialista. Trabalhou nos jornais, Correio Metropolitano, Folha Metropolitana, Diário do Grande ABC e O Repórter, da Região do ABC Paulista. Em São Paulo, na Folha da Tarde, Gazeta Esportiva, Sucursal de "O Globo", Diário Popular e Notícias Populares, entre outros. Atuou nas Rádios: Difusora de Franca, Brasiliense de Ribeirão Preto, Rádio Emissora ABC, Diário do Grande ABC, Clube de Santo André, Excelsior, Jovem Pan, Record, Globo - CBN e TV Globo de São Paulo. Participou de diversas antologias de contos e ensaios. Assina atualmente uma coluna no Jornal Comércio da Franca, um dos mais tradicionais do interior de São Paulo.
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