quinta-feira, 9 de abril de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

INÉDITO
PARTE XX
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SÉRIE
“TRAPALHADAS DE UM FOCA”
CAPÍTULO VII
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Foca preso durante reportagem
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Edward de Souza
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Tenho em geral simpatia pelo foca. Invariavelmente se incumbe das matérias mais chatas e é depreciado e fofocado entre os outros jornalistas. É um eterno curioso, e essa é uma de suas qualidades mais fecundas. Em geral, o foca não é contratado logo de cara. Passa por um período de experiência na empresa e, se der certo, tem grandes chances de integrar o time da redação. Isso aconteceu com Amilcar - nome real - quando apareceu para fazer um teste no Diário do Grande ABC, na metade dos anos 70. Formado recentemente em jornalismo, na prática nunca tinha entrando numa redação. O Claudio Maiato era o secretário do jornal, já em suas novas e modernas instalações na Rua Catequese. Carioca e brincalhão, Maiato era um velho jornalista experiente. Trabalhou em grandes jornais, entre eles Última Hora e Folha de São Paulo. O jovem Amilcar foi apresentado ao Maiato pelo Fausto Polesi, diretor do jornal e um dos proprietários. Amilcar tomou um "chá de cadeira" de umas duas horas, enquanto Maiato participava de uma reunião de pauta do jornal. Fiquei penalizado ao vê-lo deslocado e me aproximei para uma conversa. Tímido, contou que seu grande sonho era ser jornalista e com sacrifício havia concluído o curso. Convidei-o para tomar um café, dei-lhe alguns conselhos e mostrei que poderia contar comigo para ajudá-lo no que fosse preciso. Percebi que ele ficou mais calmo depois daquele papo descontraído. Amilcar não sabia em que setor do jornal seria aproveitado, mas, pela minha experiência, logo imaginei que Maiato o jogaria na editoria de polícia. Os velhos chefes de redações daqueles tempos gostavam de fazer isso. Entendiam, com razão, que a reportagem policial era uma escola para se formar um bom profissional, até porque o obriga a conviver com todas as camadas sociais. Não deu outra. Amilcar foi apresentado ao Renato Campos, editor de polícia, para fazer uma experiência no setor. Estávamos no mês de dezembro e as festas natalinas se aproximavam.
É sabido que pato novo, em redação, não dá mergulho fundo. Isso significa que, nas divisões de tarefas, foquinha sofre. Por exemplo, no fim do ano, metade da redação trabalha no Natal e a outra parte no Ano-Novo. Esses dois lados se alternam ano a ano, mas o recém-chegado não tem escolha: vai ficar obrigatoriamente com o Réveillon, o feriado mais odiado, já que é quando se quer dormir mais tarde e encher a cara, entre outras coisas. De cara Renato escalou Amilcar para o plantão do final de ano. O comando da editoria ficaria em minhas mãos, Renato estava com viagem marcada para o Rio de Janeiro, a passeio. Na véspera de ano novo tocou o telefone na redação. Era do primeiro distrito policial de Santo André. Do outro lado da linha o delegado José de Arimathéia me informava que um perigoso assaltante havia sido preso de madrugada, depois de troca de tiros com policiais. Provisoriamente ficaria detido naquele distrito, aguardando sua remoção para um presídio de maior segurança. O 1º DP de Santo André abrigava, naquela época, apenas duas celas, localizadas num corredor dos fundos, onde enormes e pesadas portas impediam o acesso a elas. Não se ouvia nenhum ruído, mesmo se por algum motivo os presos se rebelassem. Conversei com o editor chefe sobre o caso em voz alta. Amilcar ouvia atento. Quando me sentei, ele se aproximou e se ofereceu para cobrir o caso. Estava agitado e mostrando uma disposição incomum. Pensei por alguns segundos e decidi dar essa chance ao jovem repórter. Orientei-o antes, dizendo que seria de importância ouvir o marginal, tirar detalhes de sua prisão e pedir ao fotógrafo para tirar o maior número de fotos possíveis. Entusiasmado, Amilcar sacou algumas laudas, dobrou-as e com a requisição assinada foi em busca do carro de reportagem com o fotógrafo. Sai para o almoço, certo de que tudo iria correr bem, pela disposição que percebi em Amilcar. Voltei duas horas depois e nada de repórter. Liguei para o laboratório fotográfico e fui informado que as fotos do marginal estavam prontas. Amilcar havia ficado no distrito. Tinha conseguido autorização do delegado para entrar na cela e entrevistar o marginal. Ligaria quando terminasse para que o carro fosse buscá-lo. O tempo passava e nada de ligação. Fui ficando nervoso, tinha que fechar a página e pensava em fazer isso mais cedo, era final de ano e ninguém é de ferro. Liguei para o distrito. O doutor Arimathéia não estava. Falei com o escrivão de plantão, se não me engano era o Zamana, hoje delegado de polícia. Não sabia de nada nem tinha visto repórter nenhum por lá. Desci imediatamente, entrei no carro do jornal e corri ao distrito. O doutor Arimathéia estava chegando. Perguntei a ele sobre o repórter e o delegado ficou branco, percebi. Levou as mãos à cabeça e exclamou: “Meus Deus, esqueci o rapaz na cela”. Saímos os dois correndo. A cena que encontrei não esqueço nunca. Agarrado às grades, Amilcar parecia um macaco pendurado num galho. Estava roxo, certamente de tanto gritar. Nos fundos, o marginal dormia tranquilo, sem se importar com os berros do jovem foca. O delegado abriu a cela libertando Amilcar e pediu desculpas. Apavorado, cabelos desalinhados, Amilcar correu para fora e entrou no carro do jornal, me esperando. O delegado se justificou, contando que Amilcar queria de qualquer forma entrevistar o assaltante, seguindo orientações que tinha recebido minhas. Por isso, como não podia tirar o preso da cela e correr o risco de uma fuga, o delegado deixou o repórter com o preso, na promessa de voltar e tirá-lo de lá em 10 minutos. Esqueceu-se.
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*Edward de Souza é jornalista, escritor e radialista. Escreve aos sábados no Divã do Masini e às quintas-feiras no Jornal Comércio da Franca.
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Em virtude do feriado da Semana Santa, a série “Histórias das redações de jornais” continua na próxima segunda-feira, com mais capítulos de "focas do jornalismo". Amanhã escrevo um artigo especial sobre a Páscoa. Não deixem de ler e participar.
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