terça-feira, 23 de junho de 2009

DATA MARCADA COM A MORTE
MILTON SALDANHA
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Capítulo do livro inédito “Periferia da História”, especialmente
adaptado para o blog do Edward de Souza.
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O episódio que vou contar aqui aconteceu alguns meses depois do golpe militar de 1º de abril de 1964, iniciando o período da ditadura. O Uruguai ainda tinha regime democrático e lá se formou uma colônia de exilados brasileiros, com civis e militares. Os personagens mais importantes e famosos dessa colônia eram o ex-presidente João Goulart, o Jango, e o ex-governador gaúcho Leonel Brizola, que na época do golpe era deputado federal.
Até onde ia o delírio e a fantasia das pessoas não sei, mas o fato é que de uma hora para outra me vi envolvido numa grande enrascada, para a qual, aos 18 anos, não estava preparado: fui convocado para uma conspiração que pretendia desalojar os militares recém instalados no poder, restabelecendo a democracia ou, talvez, substituindo uma ditadura por outra, com a volta de Jango e Brizola do exílio.
Eu não tinha vínculos formais com nenhum partido político ou com qualquer outro tipo de organização. Fazia política estudantil, integrando um grupo de lideranças de esquerda, tão numeroso que lotaria uma Kombi, mas dotado de brilho intelectual, proporcional à nossa idade, e capacidade incrível de agitar. Entre os garotos havia ótimos oradores. Um deles era Tarso Genro, atual ministro da Justiça, como já contei aqui no blog do Edward. Eu escrevia num dos dois jornais de Santa Maria, RS, “A Cidade”, de propriedade do jornalista Clarimundo Flores, meu primeiro grande e inesquecível mestre na profissão. Foi Clarimundo, muito ligando ao Brizola, homem da sua confiança, que me meteu nessa confusão. Ele recebia seguidamente emissários em seu apartamento, os chamados “pombos correio”, que eram os contatos dos exilados com os políticos e militantes no Brasil. Aires era um deles. Sujeito todo metido a machão, fanfarrão, que adorava curtir o status de bandido, contar suas façanhas, e de ouvir relatos sobre outros bandidos. Era alto, claro, com olhos de raposa e um bigode que formava duas pontas afinadas que lhe conferiam expressão agressiva. Andava sempre bem barbeado e penteado, unhas feitas por manicure, ternos bem cortados, escondendo sob o paletó duas pistolas. A caricatura perfeita do capanga vaidoso. O cara me impressionava, ou melhor, assustava. O Aires passava um medo físico às pessoas e parecia gostar disso. Ele foi o “pombo correio” responsável pela enrascada em que me meti.
O contragolpe, com o suposto apoio de um coronel com o comando de poderosa tropa de blindados, informação de que sempre duvidei, mais sargentos e contingentes da Brigada Militar (a PM gaúcha), consistiria em tomar os quartéis na madrugada, com golpes de mão, como se diz no jargão militar. Contavam que estavam sendo até confeccionadas fardas para os civis que participariam da ação, onde o elemento surpresa seria essencial. Como se os militares fossem imbecis e não estivessem preparados para essa possibilidade. A confusão era tão mal planejada, que eu, um garoto, sabia tudo isso. Imaginem se poderia dar certo.
Minha missão seria participar da tomada de uma rádio, simultaneamente ao ataque aos quartéis, de onde ficaríamos emitindo proclamações ao povo, chamando-o também à luta. É indispensável explicar aqui que Santa Maria, localizada no coração do Rio Grande do Sul, bem no centro, é um poderoso centro militar terrestre e aéreo, montado ali como estratégia para eventual confronto com a Argentina, possibilidade sempre presente na articulação da defesa nacional. Não é por mero acaso que o III Exército, com jurisdição até o Paraná, foi sempre o maior dos quatro, embora o mais bem equipado tecnologicamente seja sempre o primeiro.
Sem talento e vocação para herói, eu não estava achando a menor graça nessa brincadeira e comecei a vislumbrar o risco da morte se aproximando. Imaginava até a cena, eu lá atrás do vidro da cabine de locução, falando ao microfone, e os inimigos invadindo a rádio à bala, atirando, o que não era nada inverossímil, pois eles é que tinham as armas e no golpe já tinham demonstrado disposição de luta. E as nossas armas, como e de onde viriam? E o nosso treinamento? Nunca soube.
Passei muitos dias preocupado, tinha insônia. Cumprindo orientações, não comentava nada com ninguém, muito menos em casa, onde isso causaria imprevisível impacto. Ao mesmo tempo, ao contrário do que faria hoje, eu não tinha coragem de dizer “isso é uma aventura muito louca, tô fora”, como seria o correto. Quando você é muito jovem, e está envolvido com compromissos políticos muito fortes, vai deixando de ser dono da própria vontade. Por maior que seja a insanidade, como era esse plano, você tem compromissos com seus companheiros e quer preservar sua integridade moral até o fim, a qualquer preço. Apesar do medo, aceitei minha tarefa e fui aguardando instruções. A experiência me ensinou que coragem não é desconhecer o medo e sim conseguir suportá-lo com responsabilidade. Bandidos são péssimos soldados, porque são covardes, entram fácil em pânico. Os melhores soldados foram sempre os homens do bem, que não abandonam seus postos porque pensam na vida também dos seus companheiros. É o senso de responsabilidade falando mais alto.
A ação deveria eclodir no prazo máximo de um a dois meses, dizia-me Clarimundo Flores, enquanto a cada duas semanas o macabro Aires aparecia por lá. Eu fazia contagem regressiva. E o pior é que não acreditava na possibilidade da nossa vitória. Ou seja, tudo de ruim para um confronto, que é o moral baixo. Era burrice demais. Os militares tinham acabado de dar um golpe com tremenda demonstração de força. Fui me preparando para o pior. Até que numa tarde Clarimundo me chamou e informou que o plano tinha vazado, os militares já sabiam de tudo. Por essa razão, “o Uruguai” (referindo-se aos exilados), tinha decidido abortar.
Ufa! Saí do apartamento e entrei no primeiro bar. Precisava de uma cerveja.
Algum tempo depois eclodiu aquela aventura maluca do coronel Jefferson Cardin, que tomou as armas de um destacamento de fronteira da Brigada Militar, lançou um manifesto anunciando o início da guerra civil, e saiu com seus revolucionários em cima de um caminhão, sem saber o que fazer e para onde ir. O Exército mobilizou todos os seus efetivos gaúchos e catarinenses para pegá-los. Tiveram o choque, numa estrada, e quase todos os rebeldes morreram em combate. Na lista dos mortos, divulgada em todos os jornais, um eu conhecia e me chamou a atenção: era o Aires.
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*Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho da fronteira, é jornalista profissional, com mais de 40 anos de atividades. Começou em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 1963. Foi repórter e exerceu cargos de chefia em alguns dos principais veículos do Brasil, como Rede Globo, jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, Diário do Grande ABC, revista Motor 3, Folha da Manhã (RS) e outros. Foi repórter em Última Hora, trabalhando com Samuel Wainer. Já assinou artigos e reportagens em mais de uma centena de publicações de todo o Brasil. Trabalhou também em assessoria de imprensa, para empresas e entidades públicas, como Ford Brasil, Conselho Regional de Economia e IPT- Instituto de Pesquisas Tecnológicas. É autor do livro “As 3 Vidas de Jaime Arôxa”, pela Editora Senac Rio, e participou como cronista da antologia “Porto Alegre, Ontem e Hoje”, pela Editora Movimento, do Rio Grande do Sul. Assinou também orelhas de diversos livros sobre dança e música, de autores brasileiros. Um ano antes de se aposentar, quando era editor-chefe do Jornal do Economista, em São Paulo, fundou o jornal Dance, que em julho completa 15 anos. Tem novo livro pronto, ainda inédito. É “Periferia da História”, onde conta de memória 45 anos da recente história brasileira. Trabalha em novos projetos editoriais, como jornalista e escritor. Na área de dança, organiza uma coletânea com os melhores editoriais publicados no Dance. Atualmente prepara um livro sobre Maria Antonietta, grande mestra da dança de salão carioca, que morreu recentemente. Apaixonado por viagens conhece quase todo o Brasil e já visitou cerca de 40 países. Por hobby e paixão é dançarino de tango.
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