quarta-feira, 27 de outubro de 2010





Edward, bom amigo de todas as horas...
Memória Terminal chegou ao fim. Agradeço a você, a nossa querida Nivia Andres, Cristina Fonseca, a todos os leitores do blog que acompanharam, se enterneceram, criticaram, compreenderam. Pude reviver, muitas vezes de forma dolorosa, uma grande parte de minha própria vida, e isso me fez um bem danado. Foi como lavar a alma. No próximo dia 28 de novembro, uma sexta-feira, vai fazer dois anos que cheguei em casa, depois do trabalho, por volta de umas sete da noite. O Marqueiz já não me esperava no portão, como sempre fazia. Nos dois últimos meses, com a saúde muito debilitada, passava quase o tempo todo deitado, no torpor causado pela metadona. Eu entrava em silêncio, ia até o quarto, ele abria os olhos, falava com dificuldade, o sorriso meio torto, triste, toda a lateral do rosto paralisada. O Astor, “Salsicha” para os amigos, tomava conta dele o tempo todo, nunca o deixava só e a Neide, uma pessoa muito especial, ficava sempre por perto, até eu chegar para cuidar dele.
Naquela sexta-feira Marqueiz se levantou, bem devagar, foi pra cozinha. Preparei a sopa de mandioquinha batida, um dos poucos alimentos que ele ainda conseguia engolir. Ficamos lá um bom tempo, eu falava, falava, falava sem parar, fazia aquela voz animada, contava coisas. Os cães ao lado e ele dando petiscos. Acabava um pacote e ele me olhava,
como a dizer, eles querem mais.
Eu lhe dava outro e ele distribuía, deixando os bichos felizes.
Umas nove da noite daquele dia, ele, cansado, foi se deitar novamente. Ficamos ali, lado a lado, a TV ligada. Meia noite, hora de outra dose de metadona, e eu o acordei para tomar o remédio. Com tanta medicação, ele costumava dormir direto, até o amanhecer, quando eu o acordava as cinco para os remédios. Deviam ser rigorosamente no horário, para que não sentisse dor.
Causavam um efeito anestésico.
Um pouco antes das cinco horas acordei assustada.
Um barulho vindo do banheiro. Ele se levantara sozinho e, ao chegar ao banheiro, o coração parou. Estava caído, apoiado na pia. Seu sofrimento havia acabado. Terminava ali a vida daquele que foi a minha vida, que me ensinou a amadurecer, a compreender, a lutar e a sobreviver.
Nunca mais a risada escandalosa, um poema sobre a mesa no dia do meu aniversário, as pequenas alegrias que fazem a nossa vida valer a pena.
Agora, sua alma atormentada finalmente está em paz. Ele nunca deixou de ser o menino do interior, ingênuo, sem vaidades e sem ambições. Muitas vezes o sangue espanhol explodia, ele esbravejava e, dali a cinco minutos, não conseguia entender porque a outra pessoa estava magoada, pra ele já estava tudo esquecido. Nunca soube odiar ou desprezar. Se magoado ficava triste, não compreendia, se fechava. Tinha um carinho muito grande por todos os amigos, pelos colegas de redação, de balcões de bar. Mesmo dos que estavam mais distantes, se lembrava sempre, contava histórias. Tantos amigos e amigas que não foram citados em Memória, mas que estavam sempre presentes em suas lembranças: o Bugre, o Laranjeira, tantos outros que não vou me lembrar agora. Escrever era uma necessidade, um sacerdócio, um exorcismo. É assim que leio Memória Terminal: o relato de uma vida, sem retoques, onde ele se retratou pior do que realmente foi e onde tentou compreender e aceitar a realidade.

Obrigada, Edward.

Beijo...

Ilca Marqueiz


Sempre achei o mundo repleto de surpresas. De repente, uma pessoa com saúde, após um exame médico-laboratorial de costume, descobre que está com câncer. O mundo desaba e a primeira coisa que se faz é lastimar e perguntar: “Deus, o que eu fiz? Por que eu?”. Nessas horas, o deus que é invocado, não é o Deus que salva, protege e perdoa, mas, sim, o anjo vingativo, que parece sentir-se feliz em magoar e fazer sofrer, não apenas uma só pessoa, mas todo o universo de pessoas ligadas a ela. É esse deus que não sabe julgar, portanto, ignora como culpar e joga toda a desgraça humana sobre uma só pessoa. Por que eu?, insiste em perguntar essa pessoa atingida, de qualquer raça ou credo, de qualquer posição econômica, social ou cultural.


É essa mesma pessoa que, quando ganha uma fortuna em dinheiro em algum tipo de loteria ou jogo de azar, enaltece a bondade divina, a bondade desse mesmo deus que, quando ocorre ao contrário, se transforma em um ser diabólico. É a mesma pessoa que, agraciada com o nascimento de um filho com saúde, brinda com champanhe e charutos importados e se derrete em agradecimento pela dádiva alcançada. Por que o ser humano aceita tão placidamente o que lhe é oferecido de bom e ao mesmo tempo reage tão violenta e intempestivamente quando alguma desgraça, seja divina ou não, recai sobre os seus ombros ou sobre os de seus familiares?

Nessa hora, não adianta reclamar. Nem pedir nem esperar ajuda dos que se dizem amigos para “qualquer hora e momento”. Se alguém realmente necessitar, surgirão as mais diversas e esfarrapadas desculpas que, se analisadas ao longe do calor dos fatos, surgirão como verdadeiras piadas. O médico cardiologista Newton Brandão, mineiro e sábio, tem uma palavra para definir essa hipocrisia humana: confrangimento, adjetivo usado para classificar quem se sente muito mal, angustia-se envolto pela necessidade de inventar desculpas para justificar a ausência em um caso de ajuda.


A Ilca, certo dia, resolveu testar uma dessas pessoas “extremamente solidárias”, que vivem oferecendo seus préstimos. Nessa época, eu estava internado para tratamento quimioterápico, ao receber a oferta dessa ajuda espontânea, a Ilca fingiu aceitar só para ver a reação da cidadã. Não vi, nem ouvi, mas deve ter sido hilário. A primeira reação da mulher foi perguntar onde ficava o Hospital do Câncer. Fica na Aclimação. Aclimação? Longe, não? E tem que ser à noite? De preferência? Sim. E como faço minhas refeições? Tem restaurante próximo? Não, à noite, infelizmente, a maioria dos estabelecimentos comerciais fecha e, para atender especificamente os frequentadores do hospital – corpo médico, enfermaria, acompanhantes – só existe uma casa de chá, franqueada, de atendimento lamentável. Nos corredores de cada andar do hospital, há máquinas elétricas que, a cada moeda de cinquenta centavos, dá direito a um café puro, simples, expresso, chocolate e chá com limão – depende do gosto, mas realmente quem tem gosto evita tomar o que é servido por essas máquinas.


Concluído o questionamento, vêm as justificativas. Não, mas justo hoje que marquei jantar com aquele chato, mas do qual depende um bom negócio. Hoje? Infelizmente, faz um mês que está marcado um carteado na casa do fulano, regado à cerveja e caipirinha. Sinceramente, para hoje a agenda está lotada. Esta marcada uma visita do encanador, que ficou de checar o sistema hidráulico do apartamento, aquele adquirido por meio de financiamento da Caixa Econômica Federal há mais de vinte anos. E ia colocando ponto final nessa narrativa, quando recebo mensagem eletrônica de um colega de trabalho. É uma mensagem realmente animadora: “Marqueiz, Deus sabe muito bem o que faz”.
E o amanhã?
Ah, o amanhã. Não estou mais preocupado com o amanhã. Quero viver o hoje. E usufruir ao máximo de todos os hojes que surgirem em minha vida.

23 de setembro de 2007 – 15h40m.
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FIM
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*Este é o vigésimo oitavo e o último capítulo de Memória Terminal, série inédita escrita pelo saudoso amigo, jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo. José Marqueiz nasceu no dia 11/06/1948. Faleceu em 29/11/2008. Agradecimentos a querida amiga Ilca Marqueiz por ter nos cedido esta obra, publicada com exclusividade por este blog. Muito obrigado a todos que acompanharam esta série. (Edward de Souza)
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