sábado, 2 de maio de 2009

O DIA EM QUE O AVIÃO POUSOU DE BARRIGA

Oswaldo Lavrado
*
TRAPALHADAS NA VIAGEM
PARA GOIÂNIA
*
Começo de Abril de 1992. Os times de futebol profissional do ABC estavam sem atividades. Para não deixar inativo o departamento de esportes da Rádio Diário do Grande ABC 1300, o qual dirigia, e o consequente desemprego, sugeri a opção de acompanhar os jogos do Santos no Brasileirão. Embora a rádio fosse sediada em São Bernardo, a iniciativa partiu em virtude das emissoras de São Paulo, obviamente, priorizarem Corinthians, Palmeiras e São Paulo. As rádios da Baixada faziam a cobertura de todos os jogos do time praiano, porém o alcance delas aqui no Planalto era mínimo e chegava com muito chiado. Como a maior parte da torcida do Santos está na Grande São Paulo, a Rádio Diário, cujo som era nítido num raio de 150 km, tentava abocanhar esse filão de audiência. E conseguiu, uma vez que chegou a ficar em quarto lugar no Ibope na Região Metropolitana de São Paulo, abaixo apenas de Bandeirantes, Globo e Jovem Pan. As transmissões dos jogos do Santos pelo Brasil trouxeram para a Rádio Diário 1.300, patrocinadores de porte, tipo Brahma, Casas Bahia e Ford, anunciantes quase impossíveis de serem conquistados transmitindo Santo André, São Bernardo ou São Caetano.
No começo de abril do ano de 1992 o Santos foi jogar em Goiânia, contra o Goiás. Pra lá embarcamos, eu (comentarista) e Edward de Souza (narrador). Por motivos econômicos o repórter e o operador de som foram dispensados. Pelo mesmo motivo (grana) viajamos de madrugada para aproveitar o desconto de 20% na passagem aérea. Pouco depois de alçar vôo, no aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, começava também nossa odisséia. Após sobrevoar o Estado de Minas uma forte turbulência chacoalhou a aeronave, obrigando a tripulação determinar aos passageiros que apertassem os cintos, não fumassem e devolvessem pratos e talheres, já que um substancial lanche estava sendo serviço. O avião estava lotado. Eu viajava no acento do meio de uma poltrona de três lugares, na frente. Do meu lado direito um padre e do esquerdo um francês. Em outra poltrona estava o Edward. Ao lado dele um jovem engenheiro e um cearense. Pelo tamanho da turbulência, o padre, que antes havia tomado um copo de vinho, rezava alto, o parisiense balbuciava coisas no idioma francês e o cearense, ao lado do Edward, em pânico, gritava que não podia morrer, porque tinha três filhos, a mulher e um cachorro o esperando em casa, além de, desesperado, proferir outras frases sem nexo. A coisa estava mesmo feia. Apenas eu, o Edward e o engenheiro mantínhamos uma falsa calma. No fundo, no fundo, estávamos apavorados. O jato já sobrevoava Goiânia quando fomos informados pela tribulação que havia um problema com o trem de pouso e a aeronave iria aterrissar de barriga. Ai o mundo veio abaixo dentro do avião. O padre tremia e rezava mais alto. Nervoso, vendo a viola em cacos, em determinado instante não me contive e exclamei: “olha, padre, se esse avião cair, não adianta nada suas preces, vamos morrer do mesmo jeito”. Arrependi-me depois. Uma aeromoça, nitidamente apavorada, começou a recolher os talheres dos passageiros, e travou um pequeno diálogo com o nosso Edward de Souza: ”por favor, seu copo, pediu gentilmente a garota. O narrador da rádio, com um copo de plástico na mão direita, ainda com metade do uísque, recusou: “moça, não entrego nada, se esta tranqueira cair, vou morrer agarrado ao copo”, sentenciou. A aeromoça, talvez pela turbulência do vôo e nervosa com a situação aflitiva do momento, deixou o Edward em paz, se é que havia paz ali naquele momento, e correu para sentar-se numa poltrona e colocar o cinto de segurança. Mais de uma hora da manhã o jato iniciou o processo de descida. Segundos depois um estrondo, as luzes se apagaram e o avião deslizou na pista, observado à distância pelos funcionários do aeroporto e soldados do corpo de bombeiros. Silêncio total. Repentinamente as luzes se acenderam. Sinal que o pouso havia dado certo. Todos se levantaram correndo, em busca da porta traseira do avião, onde uma rampa estava sendo colocada para todos saírem, deslizando por ela. Soubemos depois que foi verificada uma ocorrência nas tubulações que conduzem o fluido hidráulico do avião, o que impediu o baixamento do conjunto do trem de pouso A aeronave tocou o solo de barriga sobre uma espuma espalhada na pista, o que fez com que ele acabasse arrastando-se por, pelo menos, 400 metros.
Na saída, a tripulação, na porta, pedia desculpas pelo transtorno e agradecia os passageiros. Edward aproximou-se da mesma aeromoça e disse: "aqui está seu copo". A menina, educadamente, respondeu: "agora o senhor pode ficar com ele, leve-o de lembrança". Acho que esse copo está na casa do narrador da Rádio Diário até hoje.
O engenheiro que viajou ao lado do Edward e que tinha um carro esperando no aeroporto, nos ofereceu carona até o Hotel Samambaia, próximo ao Centro de Goiânia, onde, por coincidência, também estava a delegação do Santos. O padre, o francês e o cearense que estavam no mesmo vôo sumiram assim que o avião aterrissou. Soubemos que o cearense não quis seguir viagem em outro vôo, preferiu ir de ônibus para Fortaleza. A saga não termina ai...
Sempre viajamos com verba fornecida pela rádio e com a qual pagávamos todas as despesas. Nessa viagem, porém, o Edward arranjou um walsh (espécie de passaporte que garante ao portador passagem e hospedagem com pagamento futuro; (não sei se ainda existe). O documento era, acredito, da CVC, da qual um dos sócios, o Irineu, era amigo do Edward. Tudo bem, não fosse o nosso retorno na segunda-feira pela manhã. Pra fechar a conta do hotel teríamos que apresentar o walsh ao gerente. Malas arrumadas, prontos pra ir embora e... Cadê o papel. Tinha que estar com o Edward, claro. Mas não estava. Procura cá e acolá, revira as malas, o armário, o criado-mudo e até a bíblia (todo hotel sempre tem um bíblia no criado-mudo) e nada do tal walsh. O Edward tentou aplacar minha fúria, já que eu tinha compromisso importante e inadiável em São Bernardo na parte da tarde daquela segunda-feira. Ele ligaria para a empresa que emitiu o papel e solicitaria outro, via fax, uma vez que, à época, a informática ainda engatinhava no Brasil. Eu não podia esperar e depois de muito bate-boca entre nós dois o Edward decidiu: "vá embora que espero o walsh". Não queria deixá-lo sozinho refém no hotel, mas não tive alternativa. Se ficasse em solidariedade ao amigo, corria a risco de sair no braço com ele e perderia o compromisso aqui no ABC. Pequei minha mala e fui. O avião que me traria a São Paulo, por essas coisas do destino, ao deixar o aeroporto passou sobre o prédio do hotel Samambaia. Da janela do apartamento o Edward, que sabia o horário do meu vôo, viu a aeronave e rogou: "tomara que essa chaleira caia com aquele baixinho (eu)”. Soube mais tarde que foi apenas um desabafo, acreditei. O walsh chegou, por fax, e o narrador da Diário voltou no mesmo dia para São Paulo, num vôo da Vasp. Em tempo: O Goiás venceu o Santos por 1 a 0, gol de Túlio Maravilha, de pênalti.
_____________________________________________________________
*Oswaldo Lavrado - jornalista e radialista - trabalhou no Diário do Grande ABC, rádio e jornal, e comandou a equipe de esportes da Rádio Diário. Atualmente é editor do semanário Folha do ABC.
_____________________________________________________________