quarta-feira, 28 de abril de 2010

O ÍNDIO AMA A VIDA SEM TEMER A MORTE


"Aprendi com os índios a me contentar com o estritamente necessário, o amor pela preservação de todo o alimento que representava o sustento e não o acúmulo, o desperdício".


Meses antes de minha viagem a Europa, a Ilca teve um gesto surpreendente, só mesmo uma mulher apaixonada seria capaz de fazer. Isso ocorreu quando eu estava no Parque Nacional do Xingu para gravar as memórias dos irmãos Claudio e Orlando Villas Boas, sertanistas que dedicaram a maior parte de suas vidas em defesa dos índios brasileiros. Acompanhava-me o fotógrafo Gilberto Guimarães, o Guima, um excelente profissional. O trabalho era para a extinta revista Visão.

Fiquei alojado em uma cabana no Posto Leonardo Villas Boas – em homenagem a um dos irmãos, também sertanista, falecido vítima de doenças tropicais. Conhecera os irmãos sertanistas há pouco mais de dois anos, em 1972, quando o jornal O Estado de S. Paulo me destacou para acompanhá-los em uma expedição pelas florestas do Xingu para tentar o contato com os Kranhacãrore, mais conhecidos como índios gigantes, considerados os últimos primitivos a viverem isolados no Brasil. Desci de um Cessna, fretado pelo jornal, diretamente no acampamento aberto às margens do rio Peixoto de Azevedo, já divisa dos estados de Mato Grosso e Pará.
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A série de reportagens que fiz sobre essa expedição mereceu, no ano seguinte, o Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, na época a maior láurea concedida anualmente a um jornalista brasileiro. Foi com a passagem aérea incluída nesse prêmio é que fiz a viagem a Europa. Então, numa tarde, caminhava pelo Posto Leonardo, quando Orlando – o irmão mais velho e considerado o diplomata da família - , que estava se comunicando com São Paulo via rádio, me chamou e perguntou: “quanto pesa a sua noiva, a Ilca”?

A pergunta me deixou surpreso. Nesses últimos dias, isolado na selva, pensava mais na Eva, com quem era casado desde 1970, nos meus dois cachorros, e quase em nada mais. Tanto que não via a hora de regressar. Mesmo assim, procurei demonstrar tranquilidade. Como ela tinha pouco mais de 1,50 de altura, resolvi arriscar e respondi com firmeza: cinquenta quilos. Orlando, de imediato, repassou ao rádio:
Tire um saco de batatas e coloque-a no avião.
Depois, virando-se para mim:
- Autorizei a vinda de sua noiva, mas uma coisa você tem que me prometer: vai ter que casar com ela.
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Assim, solenemente, garanti ao sertanista que me casaria com a Ilca. A sua vinda ao Posto Leonardo seria uma surpresa que ela preparara para mim, mas frustrara em razão de estar esgotada a capacidade do avião do Correio Aéreo Nacional, um C-47 muito utilizado pelo governo norte-americano durante a Segunda Guerra Mundial, que fazia a rota entre o Parque Nacional do Xingu e outras regiões do país.

Quem se surpreendeu ao descer do avião foi a própria Ilca. Ela desconhecia que o local era densamente povoado por piuns e borrachudos, mosquitos que infernizavam até os próprios índios, e, desprevenida, desceu vestida apenas de short e uma camiseta. Os insetos a atacaram, sem chance de defesa, mas ela suportou as picadas com galhardia. Só se irritou porque, depois, seu corpo ficou todo marcado de picadas.
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Passamos vários dias se divertindo no Xingu. Nadamos no rio Tuatuari, um afluente do Xingu, visitamos as tribos próximas ao Posto Leonardo e, muitas vezes, saímos para passear pela floresta. Num desses passeios, acompanhados de um pequeno índio, fomos até a aldeia dos Kamaiorá, às margens da lagoa Ipavu. Fomos recebidos pelo grande cacique Tacumã que, não fosse o mau tempo, teria nos levado a visita a Lagoa Sagrada – cujo leito é repleto de pedras das mais preciosas, abundantes na região. Numa tarde, antes de nos despedirmos da tribo, a Ilca e eu fomos, sozinhos, para as margens da lagoa, nos despimos e, assim como os índios, ficamos uma longa hora deixando-se levar por todas as seduções do amor. Sua visita ao Posto Leonardo foi, até hoje, um dos grandes presentes que recebi da Ilca em toda a minha vida.
FILÓSOFO DA SELVA

Das minhas idas ao Xingu ficou meu aprendizado com o sertanista Claudio Villas Boas, (foto) a quem eu me referia como o Filósofo da Selva. Ele mantinha uma vasta e selecionada biblioteca na cabana onde morava, junto à aldeia dos Txukarramãe, os índios de botoque, à margem esquerda do rio Xingu. Quando não era encontrado em companhia dos silvícolas, ele geralmente estava sentado à escrivaninha, escrevendo, fazendo anotações. Escreveu vários livros, em parceria com o irmão Orlando, sobre os costumes, os hábitos, a cultura, os mitos e as lendas dessa parte da civilização, que, em plena era da informática, ainda vive isolada do mundo moderno, habitando esse precioso recanto da selva brasileira. Recanto que se transformou no Parque Nacional do Xingu por decreto do então presidente da República Jânio Quadros. Atualmente, nesses primeiros anos do século XXI, esse parque abriga 17 tribos, que falam uma dezena de dialetos, indo do tupi ao grupo linguístico Gê, mais falado entre os Txukarramãe.
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Desses indígenas, alguns se destacaram pela inteligência, pelo espírito de liderança ou pelo porte físico, exibido, principalmente, nas comemorações do Quarup – festa em louvação aos mortos – que tem como um dos pontos altos a luta denominada Uka-Uka, que mede a força física e termina quando um dos índios é derrubado ao chão e imobilizado. O campeão mais conhecido era Aritana, que comandava uma das tribos. Megaron era outro índio que se projetava por entender de radiocomunicação, o único meio de contato entre a selva e as autoridades responsáveis pelo funcionamento do parque, com exceção dos contatos pessoais feitos semanalmente com a chegada de um avião do Correio Aéreo Nacional (CAN), da Força Aérea Brasileira.
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Outro que marcou bastante era Takumã, feiticeiro e cacique dos Kamaiorá, o índio que quis levar eu e a Ilca a conhecer a aldeia sagrada.
Com Cláudio Villas Boas apreendi um pouco da essência da vida, de aceitá-la como ela é, assim como faz o índio, que não projeta o dia de amanhã, mas é alegre. O índio, dizia Cláudio, não espera nada, só vive. O índio ama a vida sem temer a morte. E é nessa filosofia que pretendo me sustentar durante esse tratamento que, penso, deverá ser longo e dolorido.
Cláudio ainda me dizia: não temo a morte. Apenas não a desejo. É difícil, reconheço, não temer a morte, esse final de existência. Não a desejar, ah!, fica bem mais fácil.
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Hoje, olhando para o passado, me vejo navegando pelo rio Xingu, já perto de escoar no rio Amazonas, me extasiando com a fartura de peixes no local. E a advertência de Megaron: Vamos voltar para a aldeia. Meu questionamento: por que, se aqui há tanto peixe. Justificava a volta: já tínhamos pescado o suficiente para alimentar a todos naquele dia. Aprendi a me contentar com o estritamente necessário, o amor pela preservação de todo o alimento que representava o sustento e não o acúmulo, o desperdício.
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Assim como ocorria com os peixes, era com os animais da floresta, como os porcos-do-mato, os macacos e outros pequenos espécimes de carne comestível para os humanos. Assim ocorria com as árvores da floresta, que só eram derrubadas diante de extrema necessidade para a construção de novos alojamentos. Assim ocorria com as águas dos rios, que corriam límpidas e puras, sem receber os dejetos lançados pelos humanos. Assim, ocorria com os índios, que não precisavam de dinheiro para viver. A natureza lhes oferecia tudo de graça e eles retribuíam, protegendo-a. Mas, com o tempo, me parece que esses ensinamentos foram se diluindo em minha mente. Difícil praticá-los vivendo na grande cidade...
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Ficou a saudade dos ensinamentos do filósofo Cláudio Villas Boas, morto antes de realizar o seu sonho de viajar pela América do Sul, e dos índios, que, assim como eu, envelheceram e agora esperam a morte. É o que tento fazer e o caminho para enfrentá-la, acredito, é reviver o passado, usufruindo do momento presente, mas sem almejar nada para o futuro. Assim, espero a morte. Sem temê-la...
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*Na próxima quarta-feira, o quarto capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. (Edward de Souza / Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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