quinta-feira, 30 de setembro de 2010


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O vocábulo do titulo pode estar em desuso, pelo que citam alguns dos mestres da língua, mas, ainda assim, ocorreu-me lembrar da prestidigitação – do bem – desenvolvida pelo mestre Thiany, dono de circo, arrebatando alegria por toda a América Latina. Fazer desaparecer um cavalo em cena ou cortar ao meio uma mulher e a seguir mostrá-la gostosa e escultural para o aplauso da platéia embevecida era fácil para sua magia divertida que não fazia mal a ninguém. O ludibrio estava implícito no espetáculo rico de um guarda-roupa principesco cobrindo lindas mulheres a despertar cobiças ou inveja. Ao prestidigitador da nova história não se pode comparar os efeitos do ilusionismo do Thianny, grande mágico do circo.

O circo instalado no Brasil revelou um novo prestidigitador – do mal – para incentivar a mentira que melhor explore a fé publica em seu benefício, acoitando os apaniguados da corte onde exercita o absolutismo. Seria impossível ignorar sua inteligência, entretanto, acreditar que Lula soubesse alguma coisa sobre o filósofo iluminista Charles Montesquieu, defensor da tripartição do poder, não se pode. Ele, que confessa não ler os jornais, mas se arroga o direito de criticar a imprensa acusando-a de ter candidato e partido, na verdade procura esconder suas criminosas lambanças, blindando-se em sequazes, esparros a seu serviço.

Na realidade a imprensa investiga – função dos poderes ignorados pelo absolutismo – e cumpre seu dever, informando a sociedade das mazelas se avultando na corrupção em que se afoga o Brasil. Uma arrogância salta aos olhos de quem quiser ver, exacerba-se no falso profeta a confiança de tudo poder, incluindo transferir suas culpas à imprensa, aos aloprados, aos mensaleiros, à Casa Civil ou Erenice. Berço desmascarado da obscuridade das negociatas iniciadas pelo Zé no governo, sob as barbas do presidente e a sombra de seu guarda-chuva.
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Apesar da proximidade que pautou suas vidas e interesses, o sindicalista, rejeitando a leitura, jamais tomou conhecimento dos fatos à sua volta registrados. Companheiros supostamente expurgados do governo por força de golpes, enxurradas de escândalos, nunca deixaram a proteção do guarda-chuva oficial. Muitos estão ativos e com destaque na campanha que ambiciona o novo ciclo da continuidade para dar seguimento ao jeito de conduzir política de absolutismo.

Três dias apartam o eleitorado brasileiro de uma decisão extremante importante no destino de cada um, sejam eles eleitores ou não, fato que aumenta a responsabilidade daqueles obrigados à manifestação cidadã nas urnas. Raciocinar sobre uma crença nas armações da prestidigitação pode ressuscitar João e o apocalipse, quando forças do mal vencem o bem.

A consciência popular começa a mostrar sabedoria ao alimentar desejo de levar a campanha para o segundo turno. O feito ensejará oportunidade de melhor discussão entre os candidatos, focando suas capacidades e conteúdos ideários anteriores e atuais. Uma perda de 6 milhões de votos em uma semana, tem profunda significação, mostrando arrogância no totalitarismo proposto para nosso futuro. Não é justo o jeito insano do ditador. Entre os muitos impropérios ouvidos nos últimos tempos, um esmagou a sensibilidade nacional, sua fé e esperança da boa construção: “nem Jesus Cristo vai me tirar a vitória nas eleições”.
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*José Reynaldo Nascimento Falleiros (Garcia Netto), 82, é jornalista, radialista e escritor francano. Autor dos livros Colonialismo Cultural (1975); participação em Vila Franca dos Italianos (2003); Antologia: Os Contistas do Jornal Comércio da Franca (2004); Filhos Deste Solo - Medicina & Sacerdócio (2007) e a novíssima coletânea Seleta XXI - Crônicas, Contos e Poesias, recentemente lançada. Cafeicultor e pecuarista, hoje aposentado. Garcia Netto é amigo e colaborador deste blog.
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quarta-feira, 29 de setembro de 2010



Por mais paradoxal que possa parecer, os médicos ao verem o resultado dos meus exames elogiam o meu estado de saúde, dizendo ser invejável para pessoas de minha idade, como se já tivesse ultrapassado a barreira dos 80. Até a pouco, não esperava completar 59 e, agora, anseio para chegar aos 60 – mas sem dor, sem cirurgias, sem sessões de rádio e quimioterapia. Se for considerado o tempo em que infernizei meus pulmões com nicotina de cigarro e o meu organismo com bebidas alcoólicas, até que posso ser considerado um protegido de Deus, o real significado do nome José em grego, conforme me informaram.
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Em toda minha vida, me recordo de ter perdido a batalha, ainda por um curto período, só uma vez na juventude. Foi quando contrai malária, durante minha estada nas florestas amazônicas. Como desconhecia os sintomas, acreditava ser ação de alguma virose. Os médicos consultados ignoravam a doença – o governo militar, à época, havia abolido a existência da malária no país. Coube ao médico Newton Brandão (foto a direita), cardiologista especializado em doenças tropicais, que diagnosticasse a malária e me indicasse o remédio correto. Foi a minha salvação.
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Mas durante o período em que convivi com essa que chamei de “maldita angústia amarela” sofri bastante, tendo ao lado a Eva. Ela permanecia ao meu lado, na cama, os olhos vermelhos. Deveria chorar escondido para não me entristecer ainda mais. Nesse período, admirei a sua devoção, o seu amor por mim. No entanto, só foi me recuperar e voltei a ser um homem perdidamente atraído por outras mulheres, como se a conquista fosse parte de um jogo do qual eu era um viciado incorrigível.
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Lembrando dessa época, me vem à mente o meu convívio com os índios. Aprendi muito, a amar a natureza, sua fauna, sua flora. A respeitá-la, sobretudo. O Xingu é um parque nacional que fascina, encanta. Como fascinou e encantou os escritores Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que lá estiveram nos primeiros anos da década 50 do século XX. Na mesma época, o Xingu recebeu a visita de outros escritores, como Jorge Amado, Zelia Gattai e José Mauro de Vasconcelos e, ainda, do rei Leopoldo, da Bélgica, persuadido a não levar para a sua terra um filhote de pássaro por um dos índios, que lhe ensinou: o pássaro nasceu para ser livre.
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Com os índios aprendi uma lição numa noite, véspera de Natal. Estávamos pescando no rio Xingu, eu e mais uns quatro indígenas, entre eles Aritana, o grande capitão da tribo iulapiti, campeão de Uka-Uka, luta tradicional realizada durante o Quarup, a festa em homenagem aos mortos. Á certa altura, me empolguei com a grande quantidade de peixes no rio e comentei alto que naquela noite iríamos encher o barco de tanto peixe. Aritana, pouco depois, interrompeu a pescaria, justificando: já havíamos pescado o suficiente para nos alimentar. Uma lição inesquecível de que só devemos extrair da natureza o essencial, o necessário para a nossa sobrevivência.
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MEUS PAIS
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Minha mãe, analfabeta, sempre cuidou da casa, sem se preocupar com ela. Era um tempo em que a mulher era destinada a procriar, criar os filhos, respeitar o marido e servi-lo, como amante e empregada. Viveu resignada e servil. Seu olhar, escuro brilhante, era um mar de ternura. Meu pai, barbeiro de profissão, homem rude, fumante inveterado, apreciava uma boa cachaça, embora às vezes passasse dos limites e, então, tornava-se violento, com a mulher e os filhos.
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Minha mãe morreu dormindo, a cabeça estirada no ombro de minha irmã Antonia, no banco de um hospital público municipal, à espera de atendimento médico. Meu pai sofreu para morrer, de embolia pulmonar. Fumou e bebeu até os dias finais de seus 77 anos de vida. Morreu cinco anos depois de minha mãe e, nesse período, aproveitou para trazer mulheres para casa e praticar atos libidinosos – tinha a mania de andar nu pela casa, junto com a companheira. Não tinha a mínima vergonha de se expor...
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De minha mãe, guardo apenas boas lembranças. Uma delas, ocorrida em minha infância, me marcou muito. Tinha pouco mais de seis anos de idade e a acompanhava pelos sítios da redondeza de Bálsamo, que ela visitava para vender roupas e bijuterias e ganhar algum dinheiro para ajudar na manutenção da casa. No meio do caminho, com o tempo nublado ameaçando chuva, decidi voltar sozinho com o intuito de jogar bola com meus colegas de escola. Receosa de que eu me perdesse, ela retornou com as sacolas de roupa – e a chuva, torrencial, nos pegou a caminho. Toda a mercadoria que ela levava nas sacolas se perdeu e até hoje não me perdôo pelo prejuízo que lhe causei. Ela nunca tocou nesse assunto.
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Do meu pai, uma triste lembrança. Numa noite, ele flagrou minha irmã Antonia namorando em um jardim da praça e a trouxe para casa segurando pelos cabelos. Antonia apelava para que ele a largasse. Em casa, minha mãe intercedeu e, em resposta, meu pai lhe deu uma pancada na cabeça, utilizando-se de um pedaço de lenha. A imagem da minha mãe, a cabeça sangrando, agarrada à minha irmã Antonia, jamais saiu de minha lembrança.
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Pelos meus irmãos, sou considerado o protegido por meu pai. Fui, dos quatro filhos mais velhos, o único que pôde cursar o ginásio e teve um curso de datilografia pago. Era, portanto, um privilegiado perante os outros: Maria Madalena, a primogênita, Sebastião, Antonia e eu. Eu, também, fui o único dos filhos nascido em Santo André. Os demais nasceram em Bálsamo.
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Na próxima quarta-feira, o vigésimo quinto capítulo de "Memória Terminal", do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50.
(Edward de Souza).
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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

DOMINGO, 26 DE SETEMBRO DE 2010
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Durante muito tempo, quem sabe séculos, a corrupção tem sido um dos maiores elos que alia corruptos e corruptores em suspeita e condenável cumplicidade. No Brasil, governados e governantes em todos os escalões, ricos, pobres e remediados, fazem parte de uma lista suja que nosso País jamais conseguiu se desvencilhar. Há corruptos e corruptores na cidade, sítio, fazenda, casebres, casas, barracos, sob pontes e em mansões e castelos.
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A nebulosa história do descobrimento do Brasil conta em verso e prosa que Cabral e seus assessores (já havia aspones na comitiva que aqui aportou trazendo os patrícios), foram admitidos pelos índios em virtude dos presentinhos oferecidos e aceitos pelos caciques, pajés e a raia miúda coberta apenas com penachos estilizados nas coloridas penas de araras e pavões tupiniquins. Aos poucos, os caciques que comandavam os pelotões, armados de arco, flecha ou tacape, foram atiçando seus desejos por espelhos, tabaco, chapéus, pulseiras e outros penduricalhos que os portugueses ofereciam pelo ouro que os indígenas carregavam, sem conhecer o valor do que entregavam aos visitantes.
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Aí deve ter começado a corrupção com a compra ou troca de favores e, para os descobridores, o poder definitivo com a aprovação total e irrestrita dos nativos. A carta de Vaz Caminha provavelmente tenha alertado o Rei de Além Mar que aqui nas terras de Santa Cruz os habitantes, um tanto estranhos, também gostavam de um agradinho e, assim, as pendengas se resolviam com civilidade. Na sequência, pouco ou quase nada mudou, apenas a oferta e os pedidos foram sendo atualizados.
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Passaram 510 anos e nesse tempo, governantes e governados seguem a linha do jeitinho para todas as situações. Claro que também as trocas evoluíram do espelhinho para dólares, viagens, casas, barcos, carros e, para os menos exigentes, uma bike, ou um empreguinho em estatal paga o favor. Poucos, desde o indígena até o nerd atual, tem se dado conta que existem corruptos e corruptores nas diversas áreas, mas a fatura vem para todos, indistintamente. Isso, infelizmente, está arraigado na cultura do brasileiro que corrompe ou é corrompido em todas as esferas e instituições, porém o efeito é idêntico para todos, mesmo um simples furar fila para receber a hóstia na igreja.
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Nesses cinco séculos muita coisa mudou, mas a corrupção não, apenas evoluiu. No caso da política e dos políticos, o fato do voto ter passado da cédula de papel, em escrutínio simples, para as sofisticadas máquinas não altera o produto. A compra de votos campeia solta e todos ficam felizes, eleitores e eleitos e, mesmo com todos os instrumentos de fiscalização, a mutreta segue mais viva do que nunca, instalada exatamente nos poderes que deveriam combatê-la. Cada dia mais cintilante e aos olhos do mundo, a corrupção está enraigada no sangue verde-amarelo e já não ruboriza o povo que, sem se indignar, não só aceita como faz parte dela.
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Vereadores, prefeitos, deputados, governadores, senadores, presidentes, escalões menores, que são eleitos para salvaguardar os interesses do povo, são alvos de CPIs cotidianas. Ou seja, os caras que foram votados para cuidar do bem público criam mecanismos para fiscalizar eles mesmos. São pagos com o dinheiro do povo para apurar bandalheira própria. As CPIs, na maioria dos casos, funcionam mais ou menos como “colocar tamanduá para cuidar das formigas".
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Enfim, malandragem aplicada, Cabral e sua turma, em 1.500, evoluíram até chegar aos chamados - mensalões, dólares na cueca, quebra de sigilos, compra e venda de estatais, privatização de rodovias ou apenas uma boquinha no guarda-chuva alheio - ficou embutida no cotidiano do brasileiro como regra para uma vida feliz e promissora. Outros cinco séculos, talvez, serão necessários para consertar o estrago que, pela esperteza do "levar vantagem em tudo" aqui instalada nos tempos de Cabral, poderá proliferar por mais um milênio. A Grande Família, da TV, tem em cada um de seus personagens o clone do brasileiro em busca de seus objetivos.
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Que Alá proteja os puros, caso encontre um.
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*Oswaldo Lavrado é jornalista/radialista radicado no Grande ABC
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sábado, 25 de setembro de 2010

SEXTA-FEIRA, 24 DE SETEMBRO DE 2010
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DEUS NÃO É APAIXONADO
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Lendo o jornal “Alvorada e Luz” (edição número 43/2005), uma publicação espírita editado pela Fraternidade Espírita Allan Kardec, situado em Curitiba, Paraná, deparo-me com um artigo assinado por José Pereira denominado “A Oportunidade de Hoje”, cujo trecho se destaca: “Deus não é apaixonado, Deus não tem paixão nenhuma, Deus é simplesmente razão. Se você quiser dar um tiro na sua cabeça agora, o problema é teu, não é de Deus; se você quiser colocar uma corda no pescoço agora, o problema é teu e não é de Deus; se você quiser tomar um copo de veneno agora, o problema é teu e não de Deus. Ele está junto de você, está junto de mim, mas nós não estamos perto dele porque o eu animal não nos deixa enxergar a presença de Deus em nós”.
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A matéria em nós sempre fala mais alto. O eu animal se destaca em nossa pequena e breve vida terrena. Daí a origem de nossos sofrimentos. O livre arbítrio tão incompreendido é um processo em que cada indivíduo por merecimento próprio, faz evoluir seu espírito. Quando encarnados, ao frequentar um estabelecimento de ensino, estudamos para “passar de ano” como se diz vulgarmente. Se “amolecer” e deixar de enfrentar os livros e compêndios, certamente terá que repetir o ano ou desistir. A vida material imita a vida (verdadeira) espiritual.
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Somos eternos queixosos. Reclamamos de tudo. Está chovendo muito ou está muito calor. O trânsito está ruim e a poluição está horrível. O sapato está muito apertado ou não consigo pagar minhas dívidas... Estou gordo ou magro demais. E vamos por ai afora. Esquecemos que as chuvas são necessárias e que o sol está exatamente onde deveria estar. Se ele (o sol) se afastar um pouquinho, morreremos de frio e se, ao contrário, se aproximar, vamos morrer torrados.
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O Universo é lógico. É como dois mais dois que somados dão quatro. Nem cinco, muito menos três. Os animais irracionais agem com lógica. O mundo vegetal também. Somente o homem, que para atingir seus objetivos materialistas fogem dessa lei universal. Daí o sofrimento!
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Dois mil anos atrás, um homem chamado Jesus, deixou um valioso testamento que eu chamo de “Estatuto Universal de Bem Viver”. Se, seguirmos com fé e coragem essas leis universais certamente seremos mais felizes.
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Todos os anos se vê pela televisão uma romaria até a igreja Santa Edwiges, localizada na Estrada das Lágrimas, no bairro São João Clímaco, em São Paulo. Os “fieis” vão à busca de milagres para saldar dívidas. Dívidas que contraíram sem o consentimento do Pai Celestial.
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Na verdade, o excesso de bebidas alcoólicas, fumo, luxúria, gula... Trará prejuízos enormes para nossa saúde. E o pior de tudo é que mesmo sabendo disso e sentindo na carne as doenças oriundas dos nossos excessos, vamos criando nossos filhos da mesma maneira. Nada aprendemos ou fingimos ignorar. Deus tem alguma coisa com isso? Jesus respondeu aos seus discípulos: “a minha tristeza é porque curei apenas a carne, mas o espírito continua o mesmo”. Palavras atribuídas ao Divino Mestre.
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A vaidade, a inveja, o orgulho e seus filhos diletos além da mágoa, do ódio entre outros males morais são a causa de nossos erros materiais. Somos como pedras brutas num processo de lapidação. Deus, para compensar o mau uso de nosso livre arbítrio, nos dá inúmeras oportunidades de acertar nossos erros e um dia, graças à lógica das leis universais, seremos lindos diamantes lapidados.
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*J. MORGADO é jornalista, pintor de quadros e pescador de verdade. Atualmente esconde-se nas belas praias de Mongaguá, onde curte o pôr-do-sol e a brisa marítima. J. Morgado participa ativamente deste blog, para o qual escreve crônicas, artigos, contos e matérias especiais. Contato com o jornalista? Só clicar aqui:
jgarcelan@uol.com.br
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quinta-feira, 23 de setembro de 2010


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Encontro, no meio de vários envelopes, umas folhas dobradas, já amareladas com o passar do tempo. Abro-as e verifico que se trata de meu mapa astral feito há muitos anos. Procuro saber o que assinalava esse mapa, se não me engano, elaborado por uma jornalista que, nas horas de folga, exercia o papel de astróloga. Ela escreve:
Parto do princípio de que o seu ascendente é Peixes, uma pessoa afinadíssima com o mar, com características inspiradas: amor à arte, às letras, à música, enfim, formas embriagantes de expressão e percepção.
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Coloco Netuno, que é o regente de Peixes, também no ascendente, o que reforça essas características. Netuno é inspiração, o fio de ligação entre o ser humano e o seu criador. Vejo haver algo de místico neste planeta que rege o místico Peixes. Mas este misticismo normalmente não se manifesta nas formas de dogmas, de carolice, mas sim na forma de embriaguez. Netuno é solvente, ele desfaz, como uma lente de água, todas as formas. Tudo em Netuno é confuso, distorcido, caótico, oceânico. Os valores do planeta são muitas vezes tão confusos que este filho de Netuno se afoga em anestésicos em geral: álcool, drogas, sexo, enquanto desligamento do concreto, música, muita música e poesia.
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O ascendente também se refere ao corpo físico. Então, do lado ascendente, está, em conjunção quase exata, o planeta Plutão. Isto porque, segundo os astros, você é suicida. Esta coisa de meta de vida associada à dissolução do corpo, a tal libertação final, a união do finito com o infinito (morte e vida se casam no momento do suicídio) me soou como um encontro de Netuno com Plutão, colocados no signo de Peixes, em aproximação com o ascendente. Plutão é o regente de Escorpião, esse bichinho que se mata, dizem com o próprio veneno, quando acuado. Plutão simboliza a morte, a água parada, a podridão da vida, os esgotos, os cantos da mente onde se escondem os símbolos relacionados à morte, os mitos, os monstros, tudo o que é destrutivo. Plutão mata o que está velho, desde afetos, idéias, valores, até o próprio corpo. E, depois, a pessoa renasce, como fênix, das próprias cinzas. Plutão no ensina a autopurificação por meio de um mergulho profundo na miséria da nossa própria existência.
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Plutão, assim como Netuno, em seu mapa astral, está em aspecto muito tenso com o Sol, o que explica ainda mais a tendência suicida. O aspecto chama-se quadratura. Plutão, a morte, está desafiando o Sol, que é vida, calor, coração, pulsação. Netuno confunde o Sol. Plutão o mata. Traduzindo: o caos desafia a vida, distrai, confunde, vem a morte e a neutraliza. De novo, surge Plutão e Netuno em aspecto tenso com a Lua... Lua, que é igual à mulher, sentimentos, intuição, maternidade, proteção, também é assassinada por Plutão. A Lua está num ponto do mapa chamado meio-céu, superimportante. Você também é lunar, ou seja, almeja, com todo o romantismo que a Lua lhe confere, o amor da mulher, da mãe, a proteção. E, ao mesmo tempo, teima em se colocar neste papel, de superior. Você ama a intensidade. Mas também inconstantemente. Por que a Lua está em Sagitário, signo de muita liberdade, signo de viagens, de autonomia, signo que acha que o gramado do vizinho é mais verde. Então sempre que consegue uma coisa (uma mulher, por exemplo) já enjoa e começa a cobiçar a do próximo.
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A Lua está em oposição ao Sol. O Sol está colocado no fundo do céu, que dá um certo amor à estabilidade (conjugal, familiar, apego às raízes). O Sol, mesmo conservador, se revela ainda como inconstante porque está colocado em gêmeos, signo da comunicação, dos contatos rápidos. Quase todo geminiano é namorador, beija-flor, borboleteador. Ele vai para cá e para lá. Sol está ainda em conjunto (muito próximo) à Vênus, o que faz com que você seja charmoso, e que acredite sinceramente em cada paixão. Esta será a definitiva. Mas não será. De novo, cheio de boas intenções. Outra característica de um tipo namorador, que invariavelmente termina sozinho, sem ninguém, sem afeto: Saturno (solidão, conservadorismo) conjunto à Marte (tesão, ação, iniciativa) no descendente. Outro ponto importantíssimo do mapa diz respeito à nossa procura e ao nosso encontro com o outro.
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E, ao final, um recado para mim: Olha, um mapa é um negócio interminável, e eu só disse algumas poucas coisas. Acho que é difícil você entender tudo isso, por que não está acostumado com nada desses símbolos. Eu lamento se não deu para entender. Tentei ser clara, juro por Deus. Em tempo: Saturno do descendente é que deve fazê-lo sofrer por ter magoado às ex-mulheres. Urano, na 12ª casa talvez explique a sua “tristeza existencial a respeito das injustiças sociais. Urano é socialista, revolucionário e está colocado na casa que diz respeito ao destino, à moira, ou seja, desgraças inevitáveis com as quais você não se conforma.
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Assinado: Liliana.
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Ao ler esse nome, lembro-me então da jornalista, jovem e simpática, que
trabalhava em Santo André, na Sucursal de O Estado de S. Paulo. Devo confessar que, apesar de ser um mapa astral, repleto de simbolismos, reconheço haver, em suas previsões, mais acertos do que erros. Só não previu essa doença, que continua a me maltratar e a me entristecer. Os diagnósticos dos médicos do Hospital do Câncer, depois de verem as últimas imagens feitas da minha cabeça e do meu pescoço, me deixaram intrigado. Primeiro, o otorrinolaringologista Ricardo Testa desconfiou da existência de vestígios de células cancerígenas nas proximidades da laringe. Não confirmou nada, porém. O cirurgião Mauro Ikeda, que me operou da primeira vez, ao analisar as imagens, mostrou-se satisfeito com o que viu. Ressalvou, no entanto, que eu deveria passar, a partir daquela data, por um tratamento alternativo, menos agressivo ao organismo. Essa decisão teria que ser tomada pelo oncologista Ulisses Nicolau. Iria depender dele o meu futuro...
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Minha consulta com o doutor Ulisses estava marcada para dois dias depois, no período matutino. Seria um dos primeiros a ser atendido. No dia e na hora marcada, para minha frustração, fui atendido por um de seus auxiliares que, mesmo de posse do meu prontuário, fez as perguntas banais de quem vê o paciente pela primeira vez: quanto tempo fumou, bebeu muito, e outras mais que já respondera desde a primeira vez quando passei por cirurgia. Esse médico-assistente, depois de analisar as imagens, me disse que tudo estava bem. Tentei ainda argumentar, lembrando que seus colegas médicos haviam indicado a provável necessidade de se fazer um tratamento alternativo devido às suspeitas de haver resquícios de células cancerígenas. Ele mostrou-se irredutível em seu diagnóstico, que foi comprovado por um dos médicos titulares que compareceu logo depois. Marcou a próxima consulta com o doutor Ulisses para daí a três meses. Sai do hospital apreensivo, tendo ao lado o inseparável Jacaré. E se realmente existir essas células cancerígenas? Elas terão mais de noventa dias para se proliferarem e, então, será tarde demais para controlá-las. Esse era e ainda é o meu pensamento, o meu temor, que prolonga a minha agonia.
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Menos de um mês após essa consulta, comecei a sentir enjôos e a perder o apetite. Dos dez quilos que ganhara em quinze dias, quatro sumira em apenas dois. Não conseguia comer. Para agravar a situação, tive diarréia e vômitos seguidos, o que me deixou ainda mais intrigado. Mesmo assim, angustiado pela dúvida, procuro continuar a viver, passando por sessões de fonoaudiologia para ver se consigo voltar a mastigar e a engolir normalmente. A falta de saliva impede que isso ocorra. Tenho que me utilizar de caldos, cremes de legumes, para induzir goela abaixo pequenos pedaços de peixes sem espinho. Experimentei carne e linguiça, para diversificar. Foi inútil. Só mesmo o peixe, leve e macio, passa pela goela, sem provocar engasgos.
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Conformado, sinto inveja, quando num bar ou numa padaria, vejo as pessoas mastigando lanches de pão com mortadela ou comendo pizzas e elas parecem não entender o porquê desse meu sentimento. Meses antes de ser acometido da recidiva, eu já demonstrava estar me recuperando aos poucos, comendo pequenos pedaços de pastel de palmito, regados à cerveja. Agora, nem esse pequeno prazer estou tendo. E dou graças por estar me alimentando sem a ajuda de aparelhos. A vida continua...
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Na próxima quarta-feira, o vigésimo quarto capítulo de "Memória Terminal", do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50.
(Edward de Souza).
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