quarta-feira, 9 de junho de 2010

Depoimento de Garcia Netto-jornalista-radialista e escritor:

"Pode qualquer pessoa com sensibilidade, qualificar como glorioso o nível de um blog que obteve o privilégio de divulgar o último magistral trabalho de José Marqueiz. Não participo do pensamento que este ou aquele capítulo de sua narração, legado aos pósteros, tenha maior ou menor qualidade. O fato de ser publicado em uma série não divide em partes o todo de uma história, verdadeira, fiel, honesta, com o testemunho de muitos que partilharam com ele a coexistência. Marqueiz revelou antes de partir, suas qualidades profissionais, seu apego ao amor recebido e doado, aos prazeres da vida e seu desprendimento aos objetivos materiais. Não precisou de nenhuma ajuda para apontar suas mazelas que assumiu com independência, hombridade e altivez na obra literária que agora divide com todos nós. Como avaliar sua compunção do relato em “Memória Terminal”? Seria apenas um ato de coragem a desculpar-se com os mais próximos? Pode não ser somente isto. A grandeza de seu espírito pode ter atinado com a urgência nobre, - como era seu silencio e ausência de queixas - de passar mensagem de previdência com a sólida base de comedimento para o futuro. Como ninguém morre tendo aprendido tudo, estou aprendendo com Marqueiz".
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Deixei o Hospital do Câncer após vencer a primeira etapa do tratamento radioquimioterápico. Já havia emagrecido cerca de dez quilos e minha pele estava com uma cor pálida, ressaltada ainda mais com o olho esquerdo estático, devido à paralisação da face esquerda. Vim direto para casa. Minha mulher dirigindo o carro e eu deitado no banco traseiro, enfraquecido. O prazo para ficar em casa, só tomando medicamentos contra a dor na cabeça era de 21 dias. Depois, o retorno para a segunda etapa. Ao todo, cinco. Fiquei pensando quando se constatou, pela primeira vez, a existência do tumor.
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O médico Mauro Ikeda marcou a cirurgia para o dia 16 de dezembro de 2003, sem antes perguntar se eu não gostaria de passar as festividades do Natal e do Ano Novo e só depois passar pela cirurgia. Não hesitei e, ainda com receio, enfrentei com uma certa serenidade aquela situação. Essa operação, conforme me informaram depois, demorou onze horas, indo da manhã até a noite do mesmo dia. Do centro cirúrgico, me encaminharam diretamente para a Unidade de Terapia Intensiva, onde permaneci por mais doze horas. Na UTI sentia estar amarrado dentro de uma jaula e transpirava de forma ardente, sem poder mexer as mãos, atadas justamente para paralisá-las e evitar o toque em algum ponto sensível.
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Quando me colocaram numa cadeira de rodas e me levaram para a parte externa da UTI, quem me aguardava era a Ilca, os olhos avermelhados, as pálpebras arroxeadas, não sei se de cansaço ou por haver chorado pela situação que eu enfrentara e continuava enfrentando. Ela tentava um diálogo comigo, mas, percebi, eu estava sem voz. Fiquei com receio de nunca mais poder falar. Horas depois fui levado para a enfermaria, me colocaram deitado em uma cama, onde permaneci imóvel, desta vez com receio de se movimentar e prejudicar a intervenção cirúrgica. Não demorou cinco dias e recebi alta, com um aparelho para facilitar a articulação da voz e de uma sonda, para poder ser alimentado com uma comida líquida, já industrializada, importada da Holanda.
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Menos de uma semana em casa, segui novamente para o hospital para medicação e retirada de alguns pontos. Só nos dias seguintes, é que retiraram a sonda. Comecei então a frequentar, diariamente, a fonoaudiologia e em poucos dias era dispensado. Passei um bom tempo só me alimentando com sopa ou outro tipo de alimentação líquida. Mesmo assim, três meses após a cirurgia, já voltara ao trabalho, fazendo reportagens para a revista Jornauto, especializada no setor automotivo. Sentia-me tão bem, que viajei inclusive para outros Estados brasileiros e, onze meses após a minha alta do hospital, embarcava para Buenos Aires, junto com a Ilca, para cobrir jornalisticamente uma feira internacional de autopeças. Nem podia imaginar uma recuperação tão rápida e comemorei, para espanto de minha mulher, tomando cerveja em demasia.
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Nos anos seguintes, 2005 e 2006, vivi e trabalhei normalmente. Ainda nos últimos meses de 2006, estava na redação do ABC Repórter, um novo diário que circulava nos sete municípios do ABC Paulista, sob a direção de Walter Estevam Júnior, um conhecido desde a década de 80. Sinceramente, não poderia reclamar de nada, até que comecei a sentir dificuldades em ouvir do lado esquerdo, justamente o local onde havia sido operado anteriormente. Perdi tempo, como já disse, com médicos que nada entendiam de câncer, e quando eu fazia correlação entre essa deficiência e a cirurgia, desdenhavam, alegando que eu estava paranóico.
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Agora, é que percebo como será longo e dolorido esse tratamento. Mas não posso esmorecer. Dizem para ter fé em um ser superior, capaz de me acalentar e me salvar. De que adianta eu fingir crer nesse todo poderoso. Estaria me enganando e vivo uma fase em que não pode haver engano. Nesses dias, nessas três semanas, período chamado pelos médicos de reservado para o repouso, pretendo mesmo direcionar meu pensamento para coisas belas, amenas, que possam me restituir o ânimo, a esperança, sim, a esperança de que um dia eu voltarei a ser um homem normal – e só agora é que sei da importância em ser normal!
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Lembrar o passado chega a fazer bem para uma pessoa com tempo ocioso obrigatório. O que me preocupa é a falta de dinheiro para a compra de medicamentos. Estou tomando cinco tipos de remédios, três vezes ao dia. Esse procedimento me prende o intestino e começo a sentir cólicas constantes, que me irritam e me tiram a confiança em sair de casa ao menos para um passeio na praça. Receio apelar para o uso de algum banheiro de bar ou padaria ou, pior ainda, não encontrar sanitário disponível e, como consequência, evacuar nas calças, o ocorrido há muitos anos, quando de uma violenta diarréia por causa de excesso de bebida e falta de comida.
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Fora o problema intestinal, sinto estar perdendo a libido e a potência sexual. Não tenho atração sexual desde quando do início desse problema, com o tratamento quimioterápico em longo prazo. Desconfiando, pego a bula dos remédios. Todos alertam para não dirigir veículos automotores em decorrência das prováveis tonturas e, o considerado mais agravante, essa afetação no desejo sexual. De imediato, procurei contato com o urologista Giordano Zanin, a quem conheço há mais de uma década e que se tornou meu amigo e confidente. Contei-lhe sobre a minha situação, e ele me confortou dizendo ser natural a falta de ereção devido ao meu estado de fraqueza. É só você ganhar peso e tudo voltará ao normal, me confortou. Sai de seu consultório mais tranquilo e disposto a ganhar peso o mais rápido possível para poder voltar à ativa, sexualmente falando.
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Fiquei, então, a lembrar da minha estada em Manaus. Era ainda um jovem, com vinte e cinco anos incompletos. Barba e cabelos negros e compridos, chamava a atenção das mulheres quando caminhava pelas calçadas da Zona Franca, sob um calor de quase quarenta graus. Mesmo sob essa alta temperatura, não deixara de tomar cachaça e outras bebidas que chegavam a queimar o organismo. Era forte, resistia.
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Ao chegar a Manaus, me hospedei em um pequeno hotel e, dali, segui para redação do jornal A Crítica – um dos principais do Amazonas -, onde fui recebido pelo jornalista Manoel Lima, então redator deste jornal e correspondente de O Estado de S. Paulo. Lima se dispôs a me ajudar na procura de uma hospedagem. Depois de zanzarmos bastante por Manaus – tinha o dinheiro suficiente para arcar com dois pernoites bem baratos – consegui um quarto em um local próximo ao porto de Manaus e não muito distante da Escadaria dos Remédios, bastante frequentado por prostitutas e vagabundos. Não tinha outra escolha e acertei com a proprietária, mesmo sob o olhar repulsivo de Lima – ele não se convencera de que o novo correspondente do Jornal do Brasil chegasse tão pobre a ponto de não poder pagar o aluguel de um quarto de um hotel destinado à classe média, ao menos.
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A notícia chegou ao diretor do jornal A Crítica, o jornalista Umberto Calderaro, que de imediato me ofereceu um emprego como repórter. Ainda nesse mesmo dia, procurei o empresário amigo de Rubens Rodrigues dos Santos e lhe entreguei o bilhete. Não sei, realmente, o que estava escrito, mas deveria relatar um pouco de minha precária situação. Bastante educado, esse empresário elogiou Rubens dos Santos e, educadamente, me ofereceu certa quantia em dinheiro - dizendo estar devendo ao amigo de São Paulo -, o suficiente para eu passar um bom tempo em Manaus, sem precisar da ajuda de mais ninguém.
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No dia seguinte, Calderaro me convidou para um passeio, em sua grande e potente embarcação, pelas águas dos rios Negro e Solimões e, pela primeira vez, pude ver o famoso encontro das águas amareladas e enegrecidas desses dois rios. Uma beleza de espetáculo. Ainda nesse barco, tomamos aperitivos e almoçamos – peixe preparado pelo comandante da embarcação, que também exercia a função de cozinheiro.
Chegamos próximo à desembocadura do rio Amazonas e, depois, regressamos. Fomos direto para a redação e, para minha surpresa, me pediram para fazer uma matéria de quatro laudas – na época, 1975, redigia-se em máquinas de datilografia e media-se o tamanho das reportagens por laudas padrão de vinte linhas.
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Mesmo pego de surpresa, uma vez que não havia feito nenhuma anotação sobre esse que julguei ser apenas um passeio de boas-vindas, escrevi o solicitado e mostrei, sem querer me expor, a minha capacidade em elaborar um texto longo, relatando a beleza de um cenário esplendoroso, mas visto como algo comum pelos habitantes locais. Esse acontecimento serviu, também, para desmentir a tese, defendida por muitos, de que o repórter precisa conhecer a região para escrever sobre ela e não cometer deslizes. Lamentável engano. É o profissional de imprensa encantado pelo novo, pelo diferente, que retrata com mais argúcia e pormenores tudo visto ao redor por onde passa, enquanto que o habitante local, sequer vê beleza naquilo onde só a beleza impera...
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Na próxima quarta-feira, o nono capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50, num contexto desfavorável à marca do patrocinador, então associada à campanha contra a nacionalização do petróleo do qual participavam várias multinacionais. Originalmente chamava-se Prêmio Esso de Reportagem e contemplava apenas a mídia impressa, mesmo a Esso possuindo um programa radiofônico (O Repórter Esso), mais tarde exibido também na televisão, o mais importante informativo eletrônico da época. A partir de 2001 foi criado um prêmio Especial de Telejornalismo. Também há premiações regionais, instituídas desde a segunda versão. (Edward de Souza/ Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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