Depoimento de Garcia Netto-jornalista-radialista e escritor:
"Pode qualquer pessoa com sensibilidade, qualificar como glorioso o nível de um blog que obteve o privilégio de divulgar o último magistral trabalho de José Marqueiz. Não participo do pensamento que este ou aquele capítulo de sua narração, legado aos pósteros, tenha maior ou menor qualidade. O fato de ser publicado em uma série não divide em partes o todo de uma história, verdadeira, fiel, honesta, com o testemunho de muitos que partilharam com ele a coexistência. Marqueiz revelou antes de partir, suas qualidades profissionais, seu apego ao amor recebido e doado, aos prazeres da vida e seu desprendimento aos objetivos materiais. Não precisou de nenhuma ajuda para apontar suas mazelas que assumiu com independência, hombridade e altivez na obra literária que agora divide com todos nós. Como avaliar sua compunção do relato em “Memória Terminal”? Seria apenas um ato de coragem a desculpar-se com os mais próximos? Pode não ser somente isto. A grandeza de seu espírito pode ter atinado com a urgência nobre, - como era seu silencio e ausência de queixas - de passar mensagem de previdência com a sólida base de comedimento para o futuro. Como ninguém morre tendo aprendido tudo, estou aprendendo com Marqueiz".
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Deixei o Hospital do Câncer após vencer a primeira etapa do tratamento radioquimioterápico. Já havia emagrecido cerca de dez quilos e minha pele estava com uma cor pálida, ressaltada ainda mais com o olho esquerdo estático, devido à paralisação da face esquerda. Vim direto para casa. Minha mulher dirigindo o carro e eu deitado no banco traseiro, enfraquecido. O prazo para ficar em casa, só tomando medicamentos contra a dor na cabeça era de 21 dias. Depois, o retorno para a segunda etapa. Ao todo, cinco. Fiquei pensando quando se constatou, pela primeira vez, a existência do tumor.
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O médico Mauro Ikeda marcou a cirurgia para o dia 16 de dezembro de 2003, sem antes perguntar se eu não gostaria de passar as festividades do Natal e do Ano Novo e só depois passar pela cirurgia. Não hesitei e, ainda com receio, enfrentei com uma certa serenidade aquela situação. Essa operação, conforme me informaram depois, demorou onze horas, indo da manhã até a noite do mesmo dia. Do centro cirúrgico, me encaminharam diretamente para a Unidade de Terapia Intensiva, onde permaneci por mais doze horas. Na UTI sentia estar amarrado dentro de uma jaula e transpirava de forma ardente, sem poder mexer as mãos, atadas justamente para paralisá-las e evitar o toque em algum ponto sensível.
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Quando me colocaram numa cadeira de rodas e me levaram para a parte externa da UTI, quem me aguardava era a Ilca, os olhos avermelhados, as pálpebras arroxeadas, não sei se de cansaço ou por haver chorado pela situação que eu enfrentara e continuava enfrentando. Ela tentava um diálogo comigo, mas, percebi, eu estava sem voz. Fiquei com receio de nunca mais poder falar. Horas depois fui levado para a enfermaria, me colocaram deitado em uma cama, onde permaneci imóvel, desta vez com receio de se movimentar e prejudicar a intervenção cirúrgica. Não demorou cinco dias e recebi alta, com um aparelho para facilitar a articulação da voz e de uma sonda, para poder ser alimentado com uma comida líquida, já industrializada, importada da Holanda.
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Menos de uma semana em casa, segui novamente para o hospital para medicação e retirada de alguns pontos. Só nos dias seguintes, é que retiraram a sonda. Comecei então a frequentar, diariamente, a fonoaudiologia e em poucos dias era dispensado. Passei um bom tempo só me alimentando com sopa ou outro tipo de alimentação líquida. Mesmo assim, três meses após a cirurgia, já voltara ao trabalho, fazendo reportagens para a revista Jornauto, especializada no setor automotivo. Sentia-me tão bem, que viajei inclusive para outros Estados brasileiros e, onze meses após a minha alta do hospital, embarcava para Buenos Aires, junto com a Ilca, para cobrir jornalisticamente uma feira internacional de autopeças. Nem podia imaginar uma recuperação tão rápida e comemorei, para espanto de minha mulher, tomando cerveja em demasia.
. Nos anos seguintes, 2005 e 2006, vivi e trabalhei normalmente. Ainda nos últimos meses de 2006, estava na redação do ABC Repórter, um novo diário que circulava nos sete municípios do ABC Paulista, sob a direção de Walter Estevam Júnior, um conhecido desde a década de 80. Sinceramente, não poderia reclamar de nada, até que comecei a sentir dificuldades em ouvir do lado esquerdo, justamente o local onde havia sido operado anteriormente. Perdi tempo, como já disse, com médicos que nada entendiam de câncer, e quando eu fazia correlação entre essa deficiência e a cirurgia, desdenhavam, alegando que eu estava paranóico.
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Agora, é que percebo como será longo e dolorido esse tratamento. Mas não posso esmorecer. Dizem para ter fé em um ser superior, capaz de me acalentar e me salvar. De que adianta eu fingir crer nesse todo poderoso. Estaria me enganando e vivo uma fase em que não pode haver engano. Nesses dias, nessas três semanas, período chamado pelos médicos de reservado para o repouso, pretendo mesmo direcionar meu pensamento para coisas belas, amenas, que possam me restituir o ânimo, a esperança, sim, a esperança de que um dia eu voltarei a ser um homem normal – e só agora é que sei da importância em ser normal!
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Lembrar o passado chega a fazer bem para uma pessoa com tempo ocioso obrigatório. O que me preocupa é a falta de dinheiro para a compra de medicamentos. Estou tomando cinco tipos de remédios, três vezes ao dia. Esse procedimento me prende o intestino e começo a sentir cólicas constantes, que me irritam e me tiram a confiança em sair de casa ao menos para um passeio na praça. Receio apelar para o uso de algum banheiro de bar ou padaria ou, pior ainda, não encontrar sanitário disponível e, como consequência, evacuar nas calças, o ocorrido há muitos anos, quando de uma violenta diarréia por causa de excesso de bebida e falta de comida.
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Fora o problema intestinal, sinto estar perdendo a libido e a potência sexual. Não tenho atração sexual desde quando do início desse problema, com o tratamento quimioterápico em longo prazo. Desconfiando, pego a bula dos remédios. Todos alertam para não dirigir veículos automotores em decorrência das prováveis tonturas e, o considerado mais agravante, essa afetação no desejo sexual. De imediato, procurei contato com o urologista Giordano Zanin, a quem conheço há mais de uma década e que se tornou meu amigo e confidente. Contei-lhe sobre a minha situação, e ele me confortou dizendo ser natural a falta de ereção devido ao meu estado de fraqueza. É só você ganhar peso e tudo voltará ao normal, me confortou. Sai de seu consultório mais tranquilo e disposto a ganhar peso o mais rápido possível para poder voltar à ativa, sexualmente falando.
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Fiquei, então, a lembrar da minha estada em Manaus. Era ainda um jovem, com vinte e cinco anos incompletos. Barba e cabelos negros e compridos, chamava a atenção das mulheres quando caminhava pelas calçadas da Zona Franca, sob um calor de quase quarenta graus. Mesmo sob essa alta temperatura, não deixara de tomar cachaça e outras bebidas que chegavam a queimar o organismo. Era forte, resistia.
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Ao chegar a Manaus, me hospedei em um pequeno hotel e, dali, segui para redação do jornal A Crítica – um dos principais do Amazonas -, onde fui recebido pelo jornalista Manoel Lima, então redator deste jornal e correspondente de O Estado de S. Paulo. Lima se dispôs a me ajudar na procura de uma hospedagem. Depois de zanzarmos bastante por Manaus – tinha o dinheiro suficiente para arcar com dois pernoites bem baratos – consegui um quarto em um local próximo ao porto de Manaus e não muito distante da Escadaria dos Remédios, bastante frequentado por prostitutas e vagabundos. Não tinha outra escolha e acertei com a proprietária, mesmo sob o olhar repulsivo de Lima – ele não se convencera de que o novo correspondente do Jornal do Brasil chegasse tão pobre a ponto de não poder pagar o aluguel de um quarto de um hotel destinado à classe média, ao menos.
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A notícia chegou ao diretor do jornal A Crítica, o jornalista Umberto Calderaro, que de imediato me ofereceu um emprego como repórter. Ainda nesse mesmo dia, procurei o empresário amigo de Rubens Rodrigues dos Santos e lhe entreguei o bilhete. Não sei, realmente, o que estava escrito, mas deveria relatar um pouco de minha precária situação. Bastante educado, esse empresário elogiou Rubens dos Santos e, educadamente, me ofereceu certa quantia em dinheiro - dizendo estar devendo ao amigo de São Paulo -, o suficiente para eu passar um bom tempo em Manaus, sem precisar da ajuda de mais ninguém.
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No dia seguinte, Calderaro me convidou para um passeio, em sua grande e potente embarcação, pelas águas dos rios Negro e Solimões e, pela primeira vez, pude ver o famoso encontro das águas amareladas e enegrecidas desses dois rios. Uma beleza de espetáculo. Ainda nesse barco, tomamos aperitivos e almoçamos – peixe preparado pelo comandante da embarcação, que também exercia a função de cozinheiro.
Chegamos próximo à desembocadura do rio Amazonas e, depois, regressamos. Fomos direto para a redação e, para minha surpresa, me pediram para fazer uma matéria de quatro laudas – na época, 1975, redigia-se em máquinas de datilografia e media-se o tamanho das reportagens por laudas padrão de vinte linhas.
. Chegamos próximo à desembocadura do rio Amazonas e, depois, regressamos. Fomos direto para a redação e, para minha surpresa, me pediram para fazer uma matéria de quatro laudas – na época, 1975, redigia-se em máquinas de datilografia e media-se o tamanho das reportagens por laudas padrão de vinte linhas.
Mesmo pego de surpresa, uma vez que não havia feito nenhuma anotação sobre esse que julguei ser apenas um passeio de boas-vindas, escrevi o solicitado e mostrei, sem querer me expor, a minha capacidade em elaborar um texto longo, relatando a beleza de um cenário esplendoroso, mas visto como algo comum pelos habitantes locais. Esse acontecimento serviu, também, para desmentir a tese, defendida por muitos, de que o repórter precisa conhecer a região para escrever sobre ela e não cometer deslizes. Lamentável engano. É o profissional de imprensa encantado pelo novo, pelo diferente, que retrata com mais argúcia e pormenores tudo visto ao redor por onde passa, enquanto que o habitante local, sequer vê beleza naquilo onde só a beleza impera...
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Na próxima quarta-feira, o nono capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50, num contexto desfavorável à marca do patrocinador, então associada à campanha contra a nacionalização do petróleo do qual participavam várias multinacionais. Originalmente chamava-se Prêmio Esso de Reportagem e contemplava apenas a mídia impressa, mesmo a Esso possuindo um programa radiofônico (O Repórter Esso), mais tarde exibido também na televisão, o mais importante informativo eletrônico da época. A partir de 2001 foi criado um prêmio Especial de Telejornalismo. Também há premiações regionais, instituídas desde a segunda versão. (Edward de Souza/ Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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Na próxima quarta-feira, o nono capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50, num contexto desfavorável à marca do patrocinador, então associada à campanha contra a nacionalização do petróleo do qual participavam várias multinacionais. Originalmente chamava-se Prêmio Esso de Reportagem e contemplava apenas a mídia impressa, mesmo a Esso possuindo um programa radiofônico (O Repórter Esso), mais tarde exibido também na televisão, o mais importante informativo eletrônico da época. A partir de 2001 foi criado um prêmio Especial de Telejornalismo. Também há premiações regionais, instituídas desde a segunda versão. (Edward de Souza/ Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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