quarta-feira, 30 de junho de 2010



Apesar de pertencer a uma família pobre, posso dizer que levei uma infância de rico. Nasci em Santo André numa fria madrugada de junho de 1948 e, dois meses após, fui no colo de minha mãe para Bálsamo, para onde minha família passou a morar. As ruas ainda eram de terra. As casas térreas, com amplos quintais, todos com árvores frutíferas. As residências dos meus avós eram as preferidas. A dos meus avós maternos possuía mangueiras com os mais diversos tipos de manga – a que eu mais apreciava era a Bourbon. Havia, ainda, rente às cercas de arame farpado no quintal, pés de abacaxi, que eu saboreava ali mesmo quando eles amadureciam. A dos meus avós maternos era preferida por causa de suas jabuticabeiras, das pequenas às grandes. Doces como mel, eu as saboreava nos próprios pés, diante do sorriso maroto do meu avô Angelim, um tipo pequeno e simpático.
Na outras casas, também, nada era proibido. Por isso, eu, sempre quando tinha vontade, invadia os quintais dessas casas e pegava minha fruta preferida - laranja, caju, melancia, dependendo da época. As mangueiras predominavam na maioria dos quintais.
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Antes de completar seis anos de idade, ingressei na escola municipal, denominada Modesto José Moreira. Lá fiz o primário e, no mesmo edifício onde funcionava a escola, tinha também o ginásio, onde cursei até o segundo ano – foi quando minha família transferiu-se novamente para Santo André. Em Bálsamo, além de estudar, cheguei a trabalhar como bóia-fria catando algodão e, depois, amendoim. Depois, passei a visitar os sítios dos arredores da cidade com um carrinho puxado à mão, arrecadando garrafas que, posteriormente, vendia no comércio da cidade. Minha última profissão em Bálsamo foi a de engraxate. Acredito que fui um dos primeiros a implantar o atendimento de engraxate em domicílio. Enquanto os demais engraxates ficavam na praça central ou andando pelas ruas à cata de cliente, eu visitava as casas, no horário marcado, e engraxava os sapatos de toda a família. Um negócio mais garantido, que foi copiado posteriormente pelos demais colegas de profissão.
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Jogava também futebol. Diziam que tinha um chute potente. Não segui carreira por ter-me contundido, lesado o tornozelo da perna direita. Nunca mais chutei uma bola com força. Aprendi a nadar nos rios e lagoas existentes nos sítios instalados ao redor da cidade. Esse aprendizado salvou a minha vida quando, ao regressar em um barco da Ilha Anchieta com destino a Ubatuba, no litoral norte paulista, o barco naufragou. Mesmo diante de ondas altas e violentas, consegui nadar até à praia da ilha. Nesse dia, foi impossível não lembrar os rios de Bálsamo.
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Em Bálsamo é que tomei gosto pela leitura. Meu pai era assinante da revista Cruzeiro, já extinta, e da Readers Digest e, nas horas de folga, eu ficava lendo em sua barbearia. Na Cruzeiro, não deixava de apreciar a última página, com a crônica de Rachel de Queiróz. Ambas, proporcionam boas leituras, bom passatempo, principalmente para uma criança que começava a descobrir o mundo exterior.
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Namorar com aquela idade era sonho e brincadeira. Cheguei a paparicar uma das meninas, da qual nem me lembro o nome. Mas lembro, não só do nome, mas também do rosto de uma por qual me apaixonei, se é que se pode chamar de paixão o sentimento de um menino com menos de dez anos. Chamava-se Alaíde, era morena, tinha cabelos negros e um sorriso encantador. Eu a via com mais freqüência aos sábados, pela manhã, quando ia até a sua casa engraxar sapatos. Ingênuo, ignorava que ela jamais iria se enamorar por um engraxate, sabendo que os garotos de família rica também a desejavam. Já se passaram quase meio século e eu ainda tenho essa menina em meu pensamento: Alaíde, minha paixão infantil.
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Em Bálsamo, fiz muita amizade e poucos amigos. Dois deles: Ismael e Tico. Ismael mudou-se de lá nos anos seguintes e só o vi, depois, uma vez. Como repórter, viajava com destino ao norte de São Paulo, quando o encontrei num posto de gasolina, pedindo carona para um motorista de caminhão. Conversamos rapidamente e ele se foi. Nunca mais o vi. Tico, cujo nome era Heider José Borduqui, permaneceu meu amigo até a sua morte. Toda vez que eu visitava Bálsamo, ia ao seu encontro. Nos dias em que lá ficava, estávamos sempre juntos, nos bares, bebendo cerveja e conversando sobre a infância passada. Quando o vi pela última vez, apesar de ter parado com as bebidas alcoólicas, aceitei tomar um copo de cerveja com ele. Brindamos a nossa saúde. Ele morreu no ano seguinte.
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De Bálsamo, tenho boas lembranças. Nos finais de ano, quando tudo dá certo, revisito a cidade. Está muito modificada. As ruas pavimentadas, o número de carros aumentou de maneira extraordinária. Não é mais nem sombra do que foi no passado. Perdeu a sua paz... Assim como eu perdi a minha saúde. Faz tempo que não volto a Bálsamo. Talvez volte um dia. Sinto que, se voltar, será uma visita nostálgica, com ar de despedida. Uma visita de quem vai para se despedir. É o que sinto. É o que o meu coração me faz dizer.
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Quando da minha infância em Bálsamo, a imagem que tinha de Bagdá era aquela dos castelos gigantes e misteriosos, de ruas estreitas, de bares camuflados nos porões, nos tapetes voadores, nos reis e nas rainhas e, principalmente, de Ali Babá e os 40 ladrões – este último que ficou mais famoso no Brasil depois que políticos confundiram Ali Babá como chefe dos 40 ladrões e não como o seu o seu implacável perseguidor. Bagdá me lembrava – e ainda me lembra na imaginação – a cidade dos sonhos, das lâmpadas maravilhosas realizadoras de desejos impossíveis. Jamais – mesmo nos dias de hoje – deixei que a guerra desfechada por sanguinário norte-americano, no suposto extermínio de armas nucleares, na conquista permanente da paz mundial, eliminasse de minha mente essa visão romântica.
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Bagdá me lembra, ainda, as mulheres com véus transparentes, deixando ver a suavidade de suas faces, o misterioso e envolvente olhar feminino que só as mulheres árabes conseguem ter. Assim, caminhando pelo corredor do terceiro andar no Hospital do Câncer, para melhor circulação do sangue, é que via, bem ao final, a figura de uma mulher que, por motivos ainda desconhecidos, me levavam em sonho para Bagdá. Ela estava lá, aparentemente só, à espera não se sabe do quê. Mais tarde, fiquei sabendo que era o seu cunhado que ali estava internado e só estava aguardando determinação para ser encaminhado para a Unidade de Terapia Intensiva. O motivo da doença, não fiquei sabendo. Só a vi, sozinha, o olhar perdido em algum lugar de seu deserto particular e, com o cansaço natural provocado pela quimioterapia, parei estático, escorando-me na parede. Respirava com dificuldade e ela me ofereceu uma cadeira.
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- Se quiser, pode entrar e descansar. Meu cunhado já foi para a UTI.
Agradeci, respirei, como se ali estivesse um oásis. Restabelecida a respiração normal, ia recomeçar a caminhada de volta ao meu quarto, quando ela formou uma espécie de triângulo com seu braço esquerdo e ofereceu a ajuda, com uma ternura, com uma meiguice jamais sentida em toda a minha vida. Não afeito à delicadeza tão espontânea, me neguei a aceitar e ela insistiu, formando de novo o triângulo com o braço esquerdo: "Aceite, por favor".

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E nessa sua insistência, por instantes, senti parte da milenar solidariedade do povo árabe. Se aceitasse, agora compreendia, estaria aceitando a ajuda que ela não poderia mais dar ao cunhado ausente. Deixei-a me conduzir até ao meu quarto e lá mesmo ela se identificou: "Meu nome e Daguirra. Nasci em Bagdá". Antes que eu a questionasse, ela complementou: "Não nessa Bagdá atual. Mas a Bagdá do meu tempo criança, dos castelos e das mil e uma noites".
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Na próxima quarta-feira, o décimo segundo capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50. (Edward de Souza/ Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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