terça-feira, 1 de setembro de 2009

A TRISTE E DOLOROSA HORA DE PARAR

OSWALDO LAVRADO

O RÁDIO EMBALA SONHOS

No mundo mercantilizado e globalizado a maioria das pessoas escolhe a profissão pelo valor de mercado, ou seja, direciona o futuro pelos dígitos inseridos no cheque mensal. Poucos são os que tentam e conseguem abraçar uma carreira por vocação ou amor a ela.
O mercantilista pouco está se lixando para o tipo de trabalho que faz, desde que este lhe proporcione status e uma boa conta bancária. O ilusionista é um romântico sofredor e, a partir do momento que arranjou a ocupação que sempre sonhou, acaba por se satisfazer com o salário, invariavelmente baixo e mirrado. Uma das profissões que abriga um punhado de ilusionistas é a de radialista. È raro encontrar um profissional da área que não ama o que faz. Pelo misticismo, fama, ilusões e esperanças, o rádio embala sonhos de quem nele milita, mas não engorda conta bancária, geralmente, ao contrário.
Lembro-me quando a Rádio Diário do Grande ABC, em 1993, foi vendida ao pastor Davi Miranda, tomada na sequência pelo séquito da Igreja "Deus é Amor". Todos os funcionários da Rádio Diário, cerca de 30, foram sumariamente demitidos, sem choro, vela ou milagres do novo comando. Mesmo sem querer admitir publicamente, todos nós, especialmente os de microfone, sentimos o golpe da separação. Afinal, no Brasil não existe número suficiente de emissoras que possa abrigar a quantidade de radialistas. Enfim, largando a rádio você deixa para trás uma penca de ouvintes que de uma maneira ou de outra fazem parte de sua vida. A grande maioria, desconhecida, porém identificada pelo pensamento e a imagem que somente o rádio pode criar. Ao separar do microfone abre-se um abismo que lhe surrupia muito mais que um instrumento de trabalho, arrebata um fraterno e leal amigo. Muitos dos nossos companheiros da Diário não conseguiam disfarçar a melancolia e a tristeza, sendo que alguns deles, embora não comprovadamente, vieram a falecer pouco menos de dois anos depois do fechamento da emissora por distúrbios provocados pelo que, para eles, significava o fim da carreira. Pior que era.
A insidiosa depressão se acomoda no íntimo de cada um, atingido violentamente pela separação e, certamente, pelo tenebroso fim da linha. Fui um dos que, resignadamente, procurei consolar os amigos de infortúnio, porém não me era fácil disfarçar a angústia de deixar uma das coisas que mais amei na vida, minha condição de radialista. Um embalo de criança que um dia se tornou realidade, mas que, como todo sonho, acaba numa manhã de verão. Eu e o Rolando Marques, já citado aqui neste espaço várias vezes, ficamos encarregados de "apagar a luz", religadas em seguida para a posse do grupo evangélico, que implantou na rádio o sistema de gravações com 24 horas de ladainhas direcionadas aos seus seguidores. Assim é até hoje.
Na rua, em frente ao prédio da rádio, Rolando e eu nos despedimos do sobrado que abrigava a emissora com forte dor no coração e, porque esconder, algumas teimosas e indisfarçáveis lágrimas rosto abaixo. Afinal, significava o fim de mais de 20 anos juntos, irmanados com os demais companheiros, com objetivos definidos: dar o melhor de nós à profissão e fazer o impossível para dignificar o trabalho.
Passados 16 anos do fechamento da Rádio Diário, alguns companheiros embarcaram para o andar de cima deste mundo, outros vagueiam sabe Deus por onde, tentando apagar as cicatrizes provocadas pelo fim da carreira jamais retomada. Não faltaram convites de outras emissoras, daqui do ABC, de São Paulo e até de paragens mais distantes, mas não seria a mesma coisa. Com respeito e reconhecimento a todas as outras honrosas e dignificantes profissões, a arte impregnada no radialista, jornalista, ator, esportista e artistas em geral não é formatada nos bancos de faculdades, mas no espírito aventureiro e ilusionista dos que nascem com o esse dom irremovível, incrustado no sangue e circulando pelas veias. Os que amam sua profissão, seja qual for, sabem como é gratificante exercê-la, mas também não ignoram a angústia do momento da separação. Quem não passou por isso pode se considerar uma pessoa feliz, mas deve estar preparado para a hora que, fatalmente, irá chegar. Aí, então, será necessária alta dose de resignação para não sucumbir diante do imponderável. Basta buscar nos olhos de um aposentado para encontrar a tristeza de quem um dia teve que deixar definitivamente a profissão que amou. Os sonhos revividos no dia a dia acabam se dissolvendo na fumaça ao vento e é necessário perseverança para acordar e encarar um novo dia e uma nova vida.
Na insidiosa hora de parar, as pernas alcançam o freio, mas os pés se negam a acionar o pedal. A cabeça gira, a respiração fica lenta e o coração dispara. Infelizmente, na maioria das vezes não há mais tempo para uma nova partida e encarar a longa estrada. É assim que funciona.
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*Oswaldo Lavrado é jornalista e radialista. Trabalhou no Diário do Grande ABC - rádio e jornal - e dirigiu por 10 anos a equipe de esportes da Rádio Diário. Recebeu a Medalha João Ramalho, segunda condecoração em importância concedida pela Câmara de São Bernardo, por organizar, junto com a equipe de esportes da Rádio Diário do Grande ABC, duas edições da Copa Infantil de Futebol que reuniu cerca de 1.7 mil jovens entre 7 e 14 anos.
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