domingo, 2 de maio de 2010

CONTO INÉDITO DE JORNALISTA FALECIDO

DAGUIRRA, A DAMA DE BAGDÁ

Desde criança, quando passava minha infância na tranquila cidade de Bálsamo, a noroeste de São Paulo, a imagem que tenho de Bagdá é aquela dos castelos gigantes e misteriosos, de ruas estreitas, de bares camuflados nos porões, nos tapetes voadores, nos reis e nas rainhas e, principalmente, de Ali Babá e os 40 ladrões – este último que ficou mais famoso no Brasil depois que políticos confundiram Ali Babá como chefe dos 40 ladrões e não como o seu o seu implacável perseguidor.
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Bagdá me lembrava – e ainda me lembra na imaginação – a cidade dos sonhos, das lâmpadas maravilhosas realizadoras de desejos impossíveis. Jamais – mesmo nos dias de hoje – deixei que a guerra desfechada por sanguinário norte-americano, no suposto extermínio de armas nucleares, na conquista permanente da paz mundial, eliminasse de minha mente essa visão romântica.
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Bagdá me lembra, ainda, as mulheres com véus transparentes, deixando ver a suavidade de suas faces, o misterioso e envolvente olhar feminino que só as mulheres árabes conseguem ter.
Assim, caminhando pelo corredor do terceiro andar no Hospital do Câncer, para melhor circulação do sangue, é que via, bem ao final, a figura de uma mulher que, por motivos ainda desconhecidos, me levavam em sonho para Bagdá.

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Ela estava lá, aparentemente só, à espera não se sabe do quê. Mais tarde, fiquei sabendo que era o seu cunhado que ali estava internado e só estava aguardando determinação para ser encaminhado para a Unidade de Terapia Intensiva. O motivo da doença, não fiquei sabendo.
Só a vi, sozinha, o olhar perdido em algum lugar de seu deserto particular e, com o cansaço natural provocado pela quimioterapia, parei estático, escorando-me na parede. Respirava com dificuldade e ela me ofereceu uma cadeira.


- Se quiser, pode entrar e descansar. Meu cunhado já foi para a UTI.
Agradeci, respirei, como se ali estivesse um oásis.
Restabelecida a respiração normal, ia recomeçar a caminhada de volta ao meu quarto, quando ela formou uma espécie de triângulo com seu braço esquerdo e ofereceu a ajuda, com uma ternura, com uma meiguice jamais sentida em toda a minha vida.


Não afeito à delicadeza tão espontânea, me neguei a aceitar e ela insistiu, formando de novo o triângulo com o braço esquerdo:
- Aceite, por favor.
E nessa sua insistência, por instantes, senti parte da milenar solidariedade do povo árabe. Se aceitasse, agora compreendia, estaria aceitando a ajuda que ela não poderia mais dar ao cunhado ausente.
Deixei-a me conduzir até ao meu quarto e lá mesmo ela se identificou:
- Meu nome e Daguirra. Sou de Bagdá.
Antes que eu a questionasse, ela complementou:
- Não desse Bagdá atual. Mas o Bagdá do meu tempo criança, dos castelos e das mil e uma noites.
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*Acompanhe na próxima quarta-feira, o quarto capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. (Edward de Souza / Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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