sexta-feira, 17 de julho de 2009

HISTÓRIAS DE UM AMIGO QUE NOS DEIXOU

OSWALDO LAVRADO
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Rubens Fenili, o Rubão, da Folha de São Paulo
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No dia de ontem, quinta-feira (16), ao abrir a página 2 do caderno "Setecidades" do Diário do Grande ABC, como faço todos os dias, para acompanhar a saborosa coluna Memória do nosso Ademir Medici, levei um susto. Mesmo antes de bater os olhos na manchete da página deparo com três fotos de rostos por demais conhecidos. Acima, o título: "Rubens Fenili, mas podem me chamar de Rubão...”
Rubens Fenili morreu no último dia 9, feriado paulista. Competente fotógrafo profissional, requisitado e respeitado em todos os espaços, Rubão, apesar do aumentativo, era magro, fininho e não passava de 1,70 de altura. Uma figura impar, amante do rock e do Corinthians. Prestou relevantes serviços à Câmara Municipal de São Bernardo e mais ainda ao jornal Folha de São Paulo. Culto, irreverente e polêmico, Rubão tinha acesso livre em todas as camadas sociais aqui no Grande ABC. Conheci o italiano, sua origem, lá pelo começo dos anos 70 quando ingressei na Imprensa. À época ele já era macaco velho nos labirintos da profissão onde a maioria dos focas, como era meu caso, tropeçava e batia cabeça. Talvez por temperamentos próximos ficamos amigos em curto espaço de tempo.
No começo dos anos 70, deixei o Diário do Grande ABC, em Santo André, e fui para a Rádio Diário, do mesmo grupo do jornal, em São Bernardo. O contato com Fenili não sofreu solução de continuidade porque o fotógrafo da Folha de São Paulo tinha entre seus melhores amigos Rolando Marques, editor de jornalismo da rádio e citado neste blog inúmeras vezes. Rubão teve em um episódio da minha vida significativa importância para que tudo acabasse da melhor maneira possível. Em 1976, um fim de tarde de sábado, voltava da sede do clube Fundação, em São Caetano, onde passei o dia batendo um barulhento truco de parceiro com o prefeito Walter Braido (falecido em novembro passado), contra seus assessores Mariano Gutierrez (também falecido em 2008) e Antonio José Dal’anese, que seria prefeito de São Caetano nas décadas 80/90.
Na direção de meu Opala amarelo, quatro portas, câmbio no volante e ano 74, subia a rampa do viaduto dos Autonomistas, sobre a estrada de ferro que divide o Centro de São Caetano e o Bairro Fundação, quando tive um pequeno entrevero com o motorista de uma Rural Willis. Não houve batida entre os veículos, porém o rapaz da Rural decidiu não deixar barato o que entendeu ser uma provocação. Já na Rua Conselheiro Antonio Prado, que margeia a estrada de ferro, o cidadão resolveu fechar a passagem, forçando minha parada. Quando desceu percebi que se tratava de um policial militar, pois estava fardado. Fiquei no meu Opala esperando. Furioso, o PM chegou até onde eu estava e, irado, passou a me agredir. Colocou o corpo para dentro do meu carro e arrancou as chaves do contato. Defendi-me como podia até o instante em que um soco do celerado acertou em cheio meu supercílio esquerdo que sangrou. Fiquei possesso e empurrei a porta na tentativa de prensar o agressor contra a Rural dele, mas o cara esquivou-se, foi até seu carro e voltou de revólver em punho. Desesperado, tentei ligar meu Opala para cair fora dali, mesmo que tivesse que passar sobre o brutamontes, mas a chave não estava no contato; o PM havia tirado um pouco antes. Fechei a porta e o rapaz batia com o cabo da arma no pára-brisa. Algumas pessoas que assistiam a patética (ou dramática) cena tentavam acalmar o policial, mas eram por ele ameaçadas com a arma. Então chegou um carro de polícia. Dois agentes desceram do fusquinha vermelho e preto, cores da época, e foram direto ao meu agressor, agora mais calmo. Conversaram e determinaram que eu os acompanhasse até a delegacia, cerca de uns 500 metros do local. Um deles pediu meus documentos e mostrei a carteira de Imprensa. Mesmo com minha camisa suja de sangue e transtornado ouvi o PM murmurar ao agressor: "Sujou, o cara é jornalista e tá cheio de gente ai a favor dele". Fomos para o 1º DP, na Avenida Goiás. Fiquei numa sala e o PM em outra com o delegado de plantão daquele sábado, Luiz Marinaro. O policial de sobrenome Cabrera contou sua versão. Após um belo chá de cadeira, a autoridade me chamou e determinou: “O senhor pode ir embora", e devolvendo meus documentos, acrescentou: "deixa tudo isso pra lá". Pedi para telefonar, mas o delegado não permitiu. Peguei os documentos e a chave do carro e parei no primeiro orelhão que encontrei. Liguei para a Rádio Diário e o Rolando Marques atendeu: "Onde você está "?, perguntou. Nervoso, respondi: "Estou em São Caetano. Fui agredido por um policial, coagido por um delegado e estou com o rosto sangrando". Rolando sugeriu que eu fosse ao PS de São Caetano e lá aguardasse. Meia hora depois ele, Rolando, apareceu no Pronto-Socorro acompanhado do Rubens Fenili, o Rubão. Fiz exame de corpo de delito e voltamos à delegacia. Já era noite, tipo 20h, e o delegado havia terminado seu plantão. Fomos então ao 1º Batalhão da PM, em São Bernardo, responsável pelo destacamento de São Caetano, onde fiz um boletim de ocorrência. O coronel Oswaldo Machado, que nos atendeu, disse que iria precisar de testemunhas para confirmar onde eu estava, o que fazia, se eu era gente boa e blá, blá, blá. Arrolei o prefeito de São Caetano, Walter Braido e meus companheiros de mesa de truco. Era minha intenção envolver o parcial delegado de São Caetano na denúncia e acabei conseguindo já que, fiquei sabendo depois, o Braido não ia com a cara do majorengo, que também morava em São Caetano.
Dias depois, recebi, na rádio, um telefonema do PM Cabrera ameaçando: “Olha, se você não retirar esse BO que está no comando algo de ruim pode lhe acontecer. Sei onde você mora em São Caetano e que é casado e tem uma filha. Sei também de seus pais que residem na Vila Gerty". Fiquei preocupado e, agora entra novamente o Rubão da Folha na história. Por sua sugestão voltamos ao comando da PM em São Bernardo. Contei o que estava ocorrendo e fui aconselhado a encerrar o caso, as ameaças seriam esquecidas e seria melhor para todos. Inconformado e não aceitando a sugestão, Rubão deu um murro na mesa de um sargento e berrou: "Ninguém vai afinar e muito menos abafar o caso. O Lavrado foi agredido, humilhado e está sendo ameaçado; a coisa não pode ficar assim". Um graduado berrou: "Cala a boca, pois pode sobrar também para o senhor". Enfurecido, o fotógrafo da Folha respondeu: ”Acompanho o caso desde o começo e não estou aqui para barganhar; se for preciso mobilizo agora mesmo toda a imprensa de São Paulo e a gente vê no que vai dar". Exigiu ainda que durante o processo administrativo uma viatura da PM ficasse defronte a casa onde eu morava, como velada proteção à minha família, no que foi feito. O processo prosseguiu, o policial foi punido de acordo com os padrões militares, o comando da PM enviou-me um ofício e outro à Rádio Diário comunicando das providências tomadas. Nunca mais vi o PM Cabrera e nem o delegado empombado que, segundo o prefeito Walter Braido havia me informado, foi cantar em outra freguesia. Rubão faleceu agora em 9 de julho, 15 anos depois, no mesmo dia da morte do nosso outro amigo-irmão Rolando Marques. O corpo de Fenili foi cremado no Cemitério da Vila Alpina, em São Paulo, ao som de rock, porque ele era fã número um de Elvis Presley e coberto por uma bandeira do Corinthians. Até seus últimos dias morou na Rua Martini, travessa da Avenida Caminho do Mar, em Rudge Ramos, São Bernardo. Descanse em paz, Rubão.
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*Oswaldo Lavrado é jornalista/radialista. Trabalhou no Diário do Grande ABC - rádio e jornal - e dirigiu por 10 anos a equipe de esportes da Rádio Diário. Recebeu a Medalha João Ramalho, segunda condecoração em importância concedida pela Câmara de São Bernardo, por organizar, junto com a equipe de esportes da Rádio Diário do Grande ABC, duas edições da Copa Infantil de Futebol, que reuniu cerca de 1.7 mil jovens entre 7 e 14 anos.
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Foto: Rivaldo Gomes/DGABC (2004)
COLUNA MEMÓRIA
DIÁRIO DO GRANDE ABC
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ADEMIR MEDICI
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Uma pena que as gerações passem e os nossos valores sejam esquecidos. Mas quem conheceu Rubens Fenili (foto), o Rubão da Câmara e da Folha, terá conhecido um jornalista e repórter fotográfico que não conseguia separar o seu trabalho profissional do humano. Até por isso Rubão foi um excelente companheiro jornalista.
Fixemos um período: anos 1980. O Grande ABC talvez vivesse a sua década mais rica em termos de imprensa, com o nosso Diário e várias sucursais e correspondentes dos grandes jornais brasileiros. Rubens Fenili fazia o seu trabalho de fotógrafo da Câmara de São Bernardo, cobrindo as sessões solenes e mil cerimônias oficiais, mas a figura de repórter fuçador era vivida como correspondente do Grupo Folha, que envolvia não apenas a Folha de S. Paulo como os jornais Notícias Populares e Folha da Tarde.
Na cobertura do cotidiano, Rubão transformava-se em líder de todos nós, dividindo gostosamente as suas descobertas na cobertura policial e numa atividade que fervia, a sindical. Memória publicou uma foto de Lula e seus companheiros de diretoria numa grande mesa do DOPS, à espera de audiência. Ao fundo, os jornalistas Roberto Baraldi (do Diário) e Rubão, o "italianinho" ferrarista, olhos atentos, sorriso desbocado: "O que será desses sindicalistas?", parecia indagar Rubão.
Margarete Acosta (ex-Diário) agora estava em O Globo; Edison Motta no Jornal do Brasil, Edward de Souza no sistema Globo - Excelsior de Rádio, Hildebrando Pafundi no Estadão, José Roberto Marques na Rádio Bandeirantes e Rubão ligando a todos para passar a última. O jornalismo do Grande ABC devia mais uma a ele, que jamais guardou um furo para si. Feliz dia em que o ex-vereador Américo de Morais repassou à Memória um conjunto de fotos de um velho Carnaval de Rua em São Bernardo. "Foi o Rubão quem tirou" - disse-me Morais. Mas, onde estaria Rubão? Aposentado, deixara a Rua Martini em Rudge Ramos e morava agora - com sua Matilde, é claro - no bairro Jordanópolis. Foi um belo reencontro. Rivaldo Gomes tirou fotos do colega mais velho Rubão. E, tempos depois, ano passado mais precisamente, Rubão ligou para falar dos seus discos e dos seus ídolos. "Você quer meus discos?" A oferta rendeu uma bela gravação de TV, que perpetua a imagem e as tiradas do querido Rubão.
Rubens Fenili - "mas podem me chamar de Rubão" - estava adoentado. Partiu ao som de Elvis Presley há uma semana. "Ele era corintiano fanático", confidenciou Matilde aos funcionários do crematório de Vila Alpina. E o Hino do Timão foi tocado três vezes naquele dia, mesclando com as canções de Elvis. No dia seguinte Rubão completaria 70 anos.
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