NOITE DE PAZ
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Ele se via ainda criança, como se estivesse frente a um espelho gigante. O quarto era simples, apenas a cama e um velho armário. As paredes, pintadas a cal, desbotadas, com teias de aranha junto ao teto, onde uma luz pendia presa por um fio. Mexia-se debaixo do lençol, às vezes abria os olhos e espiava os sapatos, deixados à beira do leito. Nenhum pacote ao lado, repetia-se a rotina de sempre. Logo mais teria de se levantar, assear-se e preparar-se para o ralo café da manhã, sem ânimo para sair à rua, encontrar-se com os moleques e mostrar os presentes recebidos.
Quando se cansava da brincadeira socorria-se de velhos gibis, encontrados no lixo. Olhava as figuras, admirava o arrojo dos mocinhos que sempre escapavam dos perigos e armadilhas e venciam os bandidos. Peito empinado rumava para o quintal, armava-se com sua espada feita de cabo de vassoura e duelava com galhos e ramos, transformados em piratas.
A adolescência pouco alterou seu ritmo de vida. Raras aventuras, lazer quase nenhum, alguns namoros isolados de pequena duração. Sem nada para oferecer, as meninas logo se afastavam, trocavam-no por rapazes mais abastados, que convidavam para sorvetes, bailes alegres e movimentados, beijinhos roubados.
Saiu como entrou: soldado raso, nem mesmo a cabo se elevou, para ter o gosto de uma distinção, soldo maior. Na rua, vagou sem destino, à espera de uma luz que indicasse o rumo a tomar. Entrou numa igreja, no silêncio do templo contemplou o presépio, o menino pobre na manjedoura. E santos martirizados nos altares. Pareceu-lhe ouvir uma voz distante e repetitiva, um chamamento do além. Compreendeu que a injustiça sempre prevaleceu pela vontade dos homens, de nada valiam os ensinamentos e exemplos, a maldade foi enxertada na alma, é inerente à natureza humana. O clamor permanecia em sua cabeça, ecoava, instigava, tinha de se opor à crueldade, restabelecer a concórdia.
Naquele bairro esquecido, muitos sentiam na garganta o sabor amargo do sofrimento, a amargura de prantear a morte. Alguns, mais exaltados, disseram que ele poderia ser um aliado no combate ao crime, um cidadão capaz de se igualar a um juiz severo. Eles precisavam de um homem corajoso que pudesse protegê-los, livrando-os do perigo que rondava suas casas.
Orgulhava-se das missões cumpridas, nunca havia falhado. O serviço era solitário, dispensava a participação de auxiliares. Recebida a encomenda, traçava um plano seguro, espreitava, escolhia o local e o horário, preferencialmente em horas desertas. Chegado o momento, o coração palpitava e ele se alegrava, como agora.
Olhou o relógio, respirou fundo. Em seguida, apagou da memória o passado, ergueu o fuzil e aguardou. Quando a vítima escolhida abriu a porta da casa e se dirigiu ao jardim para regar as plantas, apertou o gatilho, apenas um disparo, certeiro. O silenciador impediu o estrondo da detonação, o ruído do trovão que indica a força bruta da natureza ou a ira de Deus. Com um sorriso nos lábios, acondicionou a arma na sacola, ergueu-se. O matador profissional tirava de circulação mais um traficante de drogas que a Justiça deixara em liberdade. Depois, aproximou-se do cadáver, ensanguentado. Deitou sob o peito do desafeto um cartão desejando Feliz Natal e foi cumprir o resto da missão: deixar um lindo presente para os órfãos. Papai Noel não podia se ausentar, que é que as crianças iam pensar? Era Noite de Natal._____________________________________________________
*Guido Fidelis, jornalista, escritor cosmopolita, também advogado é outro dromedário da imprensa paulista. Ex-Última Hora, Diário do Grande ABC, A Nação e A Gazeta, sua pulsante literatura deixa pouca dúvida a respeito de suas preferências: drama policial com um aroma decididamente neonaturalista. Guido Fidelis tem mais de uma dúzia de livros publicados. A última obra de Fidelis, "Dádiva", foi lançada no final do mês passado pela RG Editores, de São Paulo.
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