sexta-feira, 24 de abril de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Édison Motta
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Decisão de futebol “inflama” Porto Alegre

INÉDITO
Capítulo XXVIII


Dezembro de 1974. O Brasil vivia os anos de chumbo. O general Ernesto Geisel, natural de Bento Gonçalves, RS, quarto presidente da ditadura, tentava domar os militares da chamada “linha dura” que resistiam ao processo de abertura. A censura se abatia sobre as redações dos grandes jornais e paramilitares da Operação Obam e DOI-CODI exorbitavam na “caça as bruxas”, militantes com alguma simpatia ou participação em movimentos de esquerda, para eles definidos como “subversivos”. Sabia-se da existência de presos políticos, torturas, prisões, desaparecimentos, mas nenhuma notícia era publicada na imprensa. O “Estadão” e o “Jornal da Tarde” encontraram maneira original para denunciar a censura: o primeiro publicava versos de Luiz de Camões no espaço das matérias censuradas. Por vezes, o cochilo dos sensores deixava passar o título principal da matéria seguido dos poemas. O Jornal da Tarde publicava receitas culinárias, propositadamente alteradas para quem, por ignorância ou pouca percepção, tentasse executá-las.
Para a maioria dos brasileiros, entretanto, os sérios acontecimentos dos bastidores do poder eram desconhecidos. Viviam-se os tempos do “milagre brasileiro” impulsionado pelas circunstâncias econômicas que beneficiaram o governo do presidente anterior, Emilio Garrastazu Médici, natural de Bagé, também do Rio Grande. Além do “milagre” que promoveu o rápido crescimento do Produto Interno Bruto a taxas médias de 8 a 10% ao ano, a grande alegria das multidões eram os campeonatos regionais e o nacional de futebol.
Médici, um apaixonado torcedor de futebol, costumava freqüentar o estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, com um radinho de pilha. Era ovacionado pelos freqüentadores ainda vivendo as alegrias da recente conquista do tricampeonato mundial de futebol, no México, em 1970.
Reuniões e manifestações eram proibidas. A única alegria permitida eram as partidas de futebol. Assim mesmo, com grandes aparatos de segurança no entorno dos estádios para rápida dispersão dos torcedores. O regime odiava aglomerações.
Eu havia regressado, há quase um ano, ao Diário do Grande ABC, após nove meses de trabalho como repórter da Folha de S.Paulo, para ser chefe de reportagem e, depois, editor de geral, hoje “setecidades”. Nosso sonho, dos diretores e jornalistas do Diário era ampliar ao máximo a visibilidade do jornal conquistando respeito tal como ocorria com os jornais da Capital. Nossa angústia: não havia censores no Diário. Como se participássemos de um veículo de segunda. Naquele momento, o jornal também experimentava uma fase de prosperidade com ampliação da redação e aquisição de novos equipamentos de composição a frio, o sistema off-set e uma nova e moderna rotativa sueca para impressão. Nosso esforço era oferecer uma cobertura diferenciada dos fatos, com prioridade para os assuntos regionais, porém com visão aberta para os acontecimentos nacionais e internacionais. Em dezembro, as atenções do país se voltavam para o final do campeonato brasileiro de futebol que seria disputado em Porto Alegre, RS, entre o Corinthians, de São Paulo e o Internacional, do RS.
Aquela final tinha algo especial porque o time paulista, detentor de uma das maiores torcidas do País, amargava mais de duas décadas sem conquistar um campeonato, tanto o regional como o nacional. Convenci o Fausto Polesi, diretor de redação, para que o Diário apresentasse o seu diferencial: candidatei-me a ir a Porto Alegre, acompanhado de fotógrafo, para narrar as impressões de alguém praticamente leigo em esportes, mas com olhar nativo da região. Ele topou e, em pouco tempo estávamos viajando de ônibus – apesar da prosperidade, os recursos ainda não permitiam comprar passagens de avião. Fomos eu, o fotógrafo João Colovatti e o repórter esportivo da Radio Diário, o gaúcho Jurandir Martins. Após uma longa e cansativa viagem, instalamo-nos numa pensão nas imediações do aeroporto da cidade. Para nossa surpresa, no dia seguinte encontramos uma turma do ABC – cerca de 20 torcedores do Corinthians – que se encontrava instalada na mesma pensão. Há dois dias da partida, sem praticamente ter o que fazer, resolvemos dar um passeio, a pé, pela cidade. Saíram os corintianos com suas camisetas e bandeiras. Colovatti, sempre atento, levou todo o equipamento fotográfico, com teleobjetiva e lentes especiais. De repente, no meio da caminhada, deparamo-nos com um enorme monumento. Ninguém de nós sabia o significado daquela figura do laçador. Um gaiato qualquer da turma escalou a estátua, com uma bandeira do Corinthians, e a instalou na mão do laçador. O trânsito parou, vaias, protestos e um clima de poucos amigos de quem observava a cena. Como o João foi rápido e registrou tudo em várias chapas, dispersamo-nos do grupo e fomos direto à redação do jornal Zero Hora, um dos mais importantes do Rio Grande do Sul. Lá chegando, procuramos o chefe do laboratório fotográfico e explicamos que precisávamos revelar o filme e, também, enviar algumas fotos para a redação do jornal através da telefoto, um luxo para a época. Ele concordou e pediu que voltássemos após 40 minutos para escolher as fotos que deveriam ser enviadas. Ficamos por ali, num bar próximo ao jornal, até que o tempo passasse. Em seguida, retornamos e, para nossa surpresa, a recepcionista informou que o diretor de redação gostaria de conversar conosco. Fomos até sua sala, gentilmente recebidos e percebemos que sobre sua mesa já se encontravam algumas fotos captadas pelo João. Ele perguntou se haveria alguma restrição em eles usarem uma ou mais daquelas fotos. Obviamente que não, dentro da camaradagem com que fomos recebidos. Ele anotou o nome completo do fotógrafo e disse que iria providenciar a remessa por telefoto para a redação do Diário. Para mim, já tinha a matéria do dia. Fui até a agência de correio do centro para transmitir o texto por telex. Obtivera o diferencial procurado. Um “apronto” de corintianos do ABC em plena Porto Alegre. Por certo agradaria em cheio aos paulistas – a disputa se transformou numa espécie de “guerra” entre os Estados.
O que não sabia era a repercussão que a foto causaria no dia seguinte. Porque, também no café da manhã, um dos corintianos apareceu com a edição do Zero Hora. A primeira página estava toda ocupada com a foto, assinada, do Colovatti e, abaixo, o título: “Paulistas já chegam provocando”. Foi um pandemônio. Ali mesmo, entre os funcionários da pensão era perceptível que para os gaúchos a brincadeira não teve a menor graça. Foi instintivo: todos retiraram as camisetas, enrolaram as bandeiras e saíram dispersos, para não chamar atenção. No começo da tarde fui ao estádio Beira Rio acompanhar o treino do Internacional. Poucas vezes na vida fui tão agredido com palavras:
- Paulistas de merda! Merecem uma surra! Vocês têm que sofrer aqui no Rio Grande. Nós mandamos no Brasil; de onde são os presidentes? Carioca faz samba; mineiro faz política, paulista trabalha e nós, gaúchos, governamos! E por aí afora. E eu, calado, sem revidar para não sofrer um linchamento. Afinal, estava na casa deles e tudo o que rezava é para que não descobrissem quem fez o registro do “apronto”. Procurei me informar, afinal o que representava aquele monumento e soube que se trata do principal símbolo do povo gaúcho, a estátua do laçador. Mamamia...
Durante todo o dia, as rádios inflamavam ainda mais os torcedores. Falavam cobras e lagartos daquele grupo de torcedores cujo anonimato, por razões de segurança, preservei até hoje. No final da tarde, véspera da partida chegou a delegação do Corinthians e se instalou num hotel no centro da cidade. Cuja população, naquele dia, esqueceu todas as restrições do regime militar – afinal, os presidentes eram “da casa” – e fez um verdadeiro cerco sobre o hotel. Promoveram buzinaço e algazarra durante toda a noite. Liberou geral! Ninguém, de jogadores, treinador, comissão técnica etc. conseguiu dormir. Pela primeira vez, durante todo o regime militar, vi boa parte da população invadir ruas, avenidas, becos, e comemorar livre e antecipadamente uma vitória anunciada.
Na tarde do jogo, o time do Corinthians chegou escoltado ao estádio. Sob vaias, xingações, ovos, tomates, jatos d’água, um terror. Entraram em campo como zumbis e perderam para o Internacional por 2 a zero. O Inter sagrou-se campeão nacional. Festa total na cidade. Gaúchos recompensados e vingados da provocação. Os corintianos precisaram sair de Porto Alegre às escondidas. E eu, no íntimo, morrendo de rir. Porque sempre torci pelo Santos, arquirival do Corinthians. Ambos vão se encontrar, nos próximos dois domingos, frente a frente na disputa final do campeonato paulista. Ah, se o jogo fosse em Porto Alegre...
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Édison Motta, jornalista e publicitário é formado pela primeira turma de comunicação da Universidade Metodista. Foi repórter e redator da Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil; editor-assistente do Estadão; repórter, chefe de reportagem, editor de geral (Sete Cidades) e editor-chefe do Diário do Grande ABC. Conquistou, com Ademir Médici o Prêmio Esso Regional de Jornalismo de 1976 com a série “Grande ABC, a metamorfose da industrialização”. Conquistou também o Prêmio Lions Nacional de Jornalismo e dois prêmios São Bernardo de Jornalismo, esses últimos com a parceria de Ademir Médici, Iara Heger e Alzira Rodrigues. Foi também assessor de comunicação social de dois ministérios: Ciência e Tecnologia e da Cultura. Atualmente dirige sua empresa Thomas Édison Comunicação.
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