terça-feira, 21 de dezembro de 2010

SEGUNDA-FEIRA, 20 DE DEZEMBRO DE 2010

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Nasci em 1941, na região central de São Caetano do Sul, cidade que compõe o Grande ABC, aqui na Grande São Paulo. São Caetano era, então, a cidade das olarias; Santo André dos ceboleiros e São Bernardo dos batateiros, pelo óbvio. Apesar do progresso vertiginoso, São Caetano, a época, ainda possuía muitas ruas de terra, inclusive no centro. Foi em uma delas que nasci, cresci, estudei e somente sai de lá para morar em casa própria, no Bairro Nova Gerty, com meus pais, por volta de 1951. A narrativa abaixo ocorreu em um mês de dezembro de 1949, portanto, eu estava com 8 anos. Éramos quatro amigos na mesma faixa etária.

O ano de 1949 estava nos extertores, era véspera de Natal. Sem nenhuma perspectiva de receber presentes e ainda acreditando que Papai Noel preferia sempre visitar os meninos mais comportados, arrumamos uma forma de ganhar algum mimo. Na rua de trás de nossa casa havia uma olaria, cujo dono, um português de vastos bigodes, reunia seus empregados e alguns garotos sem sonhos para lhes dar um presentinho na véspera de Natal. Deveria ser para aplacar sua consciência, talvez corroída pela presunção.

O “portuga” deixava um porteiro na olaria para impedir a entrada de garotos negros. O preconceito, a época, era latente, e o "Seu" Anísio, (esse era o nome do pulha), escancarava seu escárnio pela raça. Nós éramos quatro, (todos na faixa dos 8/9 anos). Eu, Leonardo, Chico e Adão, estes dois últimos, negros. Na portaria o vigia liberou minha entrada e a de Leonardo, porém barrou os outros dois. Na saída, com um copo de guaraná na mão, um carrinho e uma bola, eu e o Léo não sabíamos o que fazer para disfarçar a tristeza ao ver algumas lágrimas nos olhos dos amigos negros, nem tanto pelo presente não recebido, mas por serem expurgados, como se humanos não fossem. Não saímos dali. Havia a necessidade imperativa de fazer com que nossos coleguinhas recebessem um presente e ao mesmo tempo estragar a hipócrita festa do “portuga” e seu arrogante vigia, era o troco pelo estúpido preconceito, no mínimo.

No interior da fábrica havia uma mesa com comes e bebes só para os familiares do dono. Umas três senhoras, todas enfeitadas com seus vestidos largos e cintilantes, (nesse tempo mulher não usava calças... compridas) e cinco ou seis crianças, todas brancas, claro, rodeando a mesa e desfrutando dos refrigerantes, balas, bolos e outras atrativas guloseimas. A olaria fazia fundo com outra rua, exatamente a que eu morava com meus pais e irmãos. No muro havia um pequeno buraco por onde empurramos o Chico e o Adão pra dentro da festa. Foi um desastre: antes que chegassem onde estava a mesa com os comes e bebes, os "negrinhos" foram descobertos para deleite do português que, armado com um pau, surrou meus dois amigos até desfalecerem. Contou com a ajuda e colaboração de alguns empregados, brancos, ávidos em fazer média com o patrão e patroa.

Chiquinho e Adão foram atirados à rua de terra, feridos e sangrando. Foi um pavor. Eu e o Léo não sabíamos o que fazer, porém uma alma caridosa que passava conduziu ambos ao Pronto Socorro. Chiquinho tinha apenas algumas escoriações, porém Adão, com fratura do crânio, estava à morte. A noite chegando e o desespero tomando conta de todos nós que rezávamos pela vida do nosso companheiro. Com ou sem presentes, nosso Natal acabara ali. Eu e o Léo, então, resolvemos apelar para a instância que restava já que os médicos garantiam que Adão não passaria das próximas horas. Final de tarde, rumamos para a igreja Matriz (Sagrada Família) e pedimos ao Papai Noel (a gente ainda acreditava Nele) que nos desse o melhor dos presentes. A vida de Adão.

Fomos para casa sem festejar a noite de Natal, uma vez que nossos pais decidiram cancelar a humilde reunião familiar em virtude do estado de saúde do Adão que, como o Chico e o Léo, era muito querido por nossos familiares. Se o nosso pedido a Papai Noel funcionou a gente nunca ficou sabendo, mas a verdade é que o "neguinho" sobreviveu, embora tivesse ficado paraplégico sem nunca mais ter voltado a andar. Viveu de acordo com seus recursos físicos, construiu família e morreu há exatos dois anos, também em uma véspera de Natal, aqui em São Bernardo. Leonardo e Chico tomaram os caminhos indicados pelo destino. Eu mantive alguma ligação com Adão e sua família ainda por alguns anos. Léo e Chico nunca mais vi.

Desde esse dia, todo final de dezembro, lembro dos três amigos e da cena pungente daquela véspera de Natal. Apesar de um tanto cético, pelo passar dos anos que petrificam o ser humano, nada me tira da cabeça e do coração que Alguém resolveu nos dar o melhor dos presentes: um milagre naquela triste e inesquecível véspera de Natal: a vida do querido Adãozinho. Quem sabe o nome tenha ajudado.
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*Oswaldo Lavrado é jornalista/radialista radicado no Grande ABC.
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