Minha família é tradicionalmente católica. Meus avós e meus pais sempre foram da religião católica, embora não praticantes. Segui os passos de meus pais e meus irmãos mais velhos até a adolescência. Analisando o meu comportamento na infância, acredito que nem nos meus primeiros anos fui de confiar muito em religião. Tanto que, logo após a cerimônia em que fui batizado, sai com uns colegas para roubar abacaxi numa chácara nos arredores de Bálsamo. Anos mais tarde, talvez mais por curiosidade, frequentei centros de umbanda, participei de sessões espíritas e estive em templos evangélicos. De todas, a que mais me atraiu foi o espiritismo, talvez pelo que essa religião tem de mágico ao pregar a interrelação de pessoas vivas com as mortas. Só que das sessões das quais participei, nunca tive o privilégio de manter contato com nenhum espírito. Pode ser por falta de preparo, não sei.Uma pessoa com um tumor maligno infiltrado na cabeça, por mais que
deseja, não consegue continuar com um procedimento normal. É induzido a se apegar a tudo com o significado de esperança de cura. Essa a principal razão que me leva a seguir as orientações da Eva. Geralmente à noite, sozinho, coloco a unção na direção do tumor e peço o seu desaparecimento e a devolução de minha saúde. Reconheço, no entanto, que se Ele é realmente onipresente, onisciente, sabe do pouco de fé existente em mim. Reconheço, também, que se for curado, não terei pudor em dizer, a quem me perguntar, que houve a intercessão de Nosso Senhor Jesus Cristo, que orientou os médicos responsáveis pelo meu tratamento.
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Ilca, vida e amor

A Ilca me acompanha desde os seus 18 anos de idade. Quando a conheci no parque, durante um festival de aperitivos, jamais imaginaria que aquela menina seria a minha companheira por toda a vida. Posso dizer que devo a ela o fato de hoje não ser um molambo a perambular pelas ruas ou um indigente internado em algum asilo de loucos. Não esmoreceu nem no auge de minha fase de alcoólatra. Suportou meu bafo podre de cachaça sem nunca reclamar. Também nunca interferiu em minha vida para que eu parasse com a bebida ou com o cigarro. Sempre me deixou ser um homem livre em minhas decisões. Caso ela tivesse me abandonado durante meus longos períodos de desemprego e aumento do consumo de bebidas alcoólicas, certamente não teria em quem me apoiar. Costumo dizer que a Ilca é, para mim, cinquenta quilos de amor e um
metro e cinquenta de coragem, referindo-me ao seu peso e à sua estatura. Uma pequena grande mulher, que aprendi a admirar e a amar mais e mais a cada ano em que passamos juntos. Ao contrário de mim, ela se apega ao emprego. Nesse mais de trinta anos em que a conheço, só trabalhou em três locais: em uma metalúrgica, durante quase quinze anos, em uma concessionária revendedora de veículos, o mesmo período e, depois de aposentada, continuou na ativa, como secretária executiva, sua profissão, em um sindicato patronal.
Mesmo querendo esquecer, no início, eu a hostilizava, tentando com esse
procedimento testar se ela realmente me amava. Ela, resignada, percebia meu estado alcoólico e fingia nada ter ocorrido. Poucas vezes discutimos e, quando houve discussão, foi por motivos banais. Apesar de minha fama de conquistador, mulherengo, confiou e confia em mim. Nunca me atanazou a vida por minhas viagens nos finais de semana com destino a Ubatuba, a Iguape, ou a outros locais onde poderia levar outras mulheres. Nas poucas vezes em que adoeci, ela foi a primeira a providenciar assistência médica. A mais dolorosa e angustiante foi a constatação de câncer em minha garganta. Estupidamente, a comuniquei por telefone o diagnóstico da doença.
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Na próxima quarta-feira, o vigésimo sétimo capítulo de "Memória Terminal", o penúltimo escrito pelo jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50. (Edward de Souza).
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