quarta-feira, 1 de setembro de 2010


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A missionária demonstrava estar atordoada, sem saber qual providência adotar, ao me ver naquele estado deplorável. A cidade mais próxima era Normandia e, até lá, o percurso teria de ser feito a pé. E eu não tinha condições de caminhar sozinho. A não ser amparado e, mesmo assim, com muita dificuldade. Vi a missionária conversando com alguns índios, que foram até o interior da mata e voltaram, minutos depois, com uns galhos de árvores e pedaços de cipós. Eu apenas observava a movimentação em torno, sem quase nada compreender. Só entendi quando os índios, habilidosos, em pouco tempo improvisaram uma maca. Conclui: eles haviam decidido me levar para Normandia deitado naquela maca. Conclusão certeira.
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Lembro-me vagamente de ter sido uma longa viagem, ainda interrompida várias vezes devido aos meus desejos de evacuar – e expelia apenas sangue. A missionária, talvez mais que eu, temia que a situação se agravasse no meio da floresta e ela sem nenhum recurso para me socorrer. Em Normandia – onde há comentários de que Pappillon ali esteve após a fuga – quase não tem unidades médicas capazes de realizar atendimentos mais graves. O médico, ou enfermeiro que me atendeu, sugeriu a minha imediata transferência para Boa Vista, a capital. Para isso, a localidade dispunha de uma velha ambulância.

Também não sei como cheguei a Boa Vista. Só me lembro que, em consequência de longo tempo sem bebida alcoólica, fui apossado – pela primeira vez na vida – de delirium tremulus (?) e, traduzindo, comecei a delirar e a tremer. Via animais andando pelas paredes, pessoas tentando retirar a sonda de meu nariz e gritava, gritava, clamava por ajuda. Até que, num momento de completa loucura, arranquei todos os aparelhos que se encontravam grudados em meu corpo, levantei-me da cama daquele quarto do hospital, e fui até a sala da diretoria. Fui queixar-me dos animais nas paredes, das pessoas que me azucrinavam. O diretor do hospital se irritou com o meu gesto inconveniente e exigiu mais rigor dos enfermeiros para comigo. Passei a ser vigiado e, em vez de ter alta no dia seguinte, permaneci quase uma semana internado. Quando reagia, exigindo minha liberação, simplesmente me aplicavam uma injeção e eu desfalecia, sem nenhum poder de reação.
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Sei que numa tarde, ainda sonolento, recebi a visita de dom Aldo Mongiano. Aproveitei a sua presença para que interviesse e me retirasse daquele lugar. Queria voltar para São Paulo, ver minha mulher e, mais tranquilo, procurar assistência médica. O religioso ficou de me atender. Mesmo assim, só fui liberado num sábado, um sábado de Aleluia. Nesse mesmo dia, marquei meu retorno a São Paulo. O vôo sairia à meia-noite, faria escala em Manaus, Brasília e só depois pousaria na capital paulista. Telefonei para minha mulher e pedi que me esperasse na manhã seguinte no aeroporto de Guarulhos.

Para a missionária e o bispo prometi que escreveria o livro, sem mesmo entrevistar os índios, apenas baseado nos documentos que eles haviam me cedido. E cumpri minha promessa. Seis meses depois, entregava o manuscrito de Os Filhos da Serra do Sol. Nesse mesmo período, fiz as consultas e os exames necessários. Apesar de constatada a hemorróida, optei por não operar. O que ocorreria dois anos depois, quando não suportava mais o incômodo.
Há mais de três décadas, acredito que em uma crônica publicada em A Crítica, de Manaus, intitulada Lamento, expressei o amor que um homem sente por uma mulher. Nesse caso, meu amor pela Ilca. A crônica merece ser transcrita pela transparência, pela ausência total de pudor ao me revelar um homem apaixonado. Lembro-me apenas que estava morando sozinho em Manaus à espera da Ilca. Na data prevista, por razões explicadas depois, ela não compareceu. E fui então para a Escadaria dos Remédios, local que reunia os boêmios da capital amazonense, às margens do rio Negro e escrevi: .

A Escadaria dos Remédios está de luto. Seu povo está triste, cabisbaixo. Nas mesas, o quadro solitário do abatimento e da angústia. As garrafas de cerveja permanecem vazias. O silêncio amordaçou as vitrolas e as músicas não tocam mais. O rio Negro parou suas águas e as embarcações continuam ancoradas. Até a brisa, a doce brisa que vem da floresta, deixou de soprar. Uma densa nuvem escura encobriu o azul constante do céu amazônico. A chuva molhou o sol e a lua. Uma tristeza imensa, incomensurável como o rio Amazonas, parece ter inundado o território livre, romântico, promíscuo, puro, rebelde e violento da Escadaria dos Remédios.
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Não há movimento. Tudo está parado. E são de tristeza as poucas ondas do rio. O boto, antes tão exibido, não pula mais como um golfinho ao aproximar das embarcações. Os pássaros, em revoada, fugiram ninguém sabe para onde e não mais se ouve seus cantares ao amanhecer. Vitória-régia murchou, como que enfeitiçada pelo sopro de uma bruxa má.
Deixaram de pescar os caboclos; parece até que tucunaré e tambaqui fugiram no manancial escuro e profundo, doce e misterioso da bacia do rio Negro. As casas, flutuantes, perderam seu colorido, sua beleza primitiva, sua dócil rusticidade. Os bares flutuantes cerraram suas portas. Agora não dá mais para tomar um aperitivo nem comprar peixe e coco verde. O barco emperrou, não quer mais navegar. Ainda mais distante, quase invisível, ficou o horizonte da felicidade.

A natureza também tem seus sentimentos. Tanta festa ela fez, com tanta beleza se enfeitou, para depois se decepcionar. Pintou o céu de um azul jamais visto, enviou sua mais doce brisa, deu aos pássaros o seu mais belo cantar e transformou o rio Negro no mais doce dos mares. Reuniu todas as embarcações da região, deu alegria aos barqueiros e pescadores. Fez tremular ainda mais as bandeiras verde-amarela das embarcações. O entardecer ganhou novo colorido e ficou parecendo um cartão postal. À vida deu mais consistência. Manaus estava em festa. Tudo isso, todos esses preparativos para recepcionar a mais linda e mais amada das mulheres. A menina eterna, de lábios de anjo e cabelos de fada. A companheira, amiga e mãe de um homem solitário. A mulher que sabe sorrir para não fazer chorar e cantar no instante de lamentar.
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Mas você não veio. Não quis pisar no chão de Manaus e respirar o ar mais puro do mundo. Não quis conhecer o Teatro Amazonas, principal símbolo da fase áurea da borracha. Nem ir às praias fluviais. Visitar seus bares e restaurantes, tomar cachaça de Belém e comer uma peixada típica amazonense. Não aceitou meu convite para navegar pelos rios amazônicos. E conhecer o território livre da Escadaria dos Remédios, seus homens e suas mulheres. E todos a esperavam. De tanto eu cantar sua beleza, imaginavam que você viria por sobre as ondas do rio Negro, flutuando como a mais maravilhosa das ninfas. Escreve e diz apenas aguardar meu regresso, certa da minha partida imprevisível.
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Sua ausência está desmoronando o império dos românticos e dos loucos da Escadaria dos Remédios. Está alquebrando os homens de braços de aço e peito de ferro. Homens acostumados a enfrentar as mais violentas tempestades. A subviver onde a subsistência quase não existe. Homens valentes e destemidos como João Balduíno, de Jorge Amado. Homens que madrugam com um copo de cerveja na mão e uma prostituta nos braços. Mas que são dóceis quando amam. Frágeis, até. Muitos chegam a ser até piegas. Como eu. Mas o amor é uma lista telefônica de perdões. O Amazonas ainda espera por você, Ilca...
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Na próxima quarta-feira, o vigésimo primeiro capítulo de "Memória Terminal", do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50.
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Edward de Souza
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*Os comentários para este capítulo, escrito pelo saudoso jornalista José Marqueiz, foram suspensos. Agradecemos sua compreensão.
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