quarta-feira, 8 de setembro de 2010



Nesse mesmo ano em que estive em Roraima, em julho, Fausto Polesi novamente me arrumou um novo encargo: prestar assessoria para Moacyr Rodrigues, candidato a prefeito de São Caetano do Sul. Seria uma batalha dura, advertiu, uma vez que Moacyr era procurador da Justiça do Estado de São Paulo com pouca vivência política e não muito conhecido na cidade, ao contrário de seu pai, homônimo, já falecido, que inclusive dava nome a uma instituição local. Para agravar a situação, Moacyr enfrentaria o candidato apoiado por Luiz Tortorello, atual prefeito, que gozava de ampla popularidade. Comecei a campanha elaborando um folheto com um apelo materno. A mãe de Moacyr garantia: tenho certeza de que meu filho será o melhor prefeito que São Caetano já teve. E arrematava: coração de mãe não falha.
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Como Fausto havia previsto, essa foi uma campanha difícil para Moacyr Rodrigues. Ele sequer tinha sido vereador e partia para disputar o cargo máximo no município, apesar de contar com o apoio do Diário do Grande ABC, o mais influente jornal da região, e do então governador Luiz Antonio Fleury, do qual era amigo. No meio da campanha, numa tarde, Moacyr me chamou em sua sala e me advertiu: uma das autoridades que eu entrevistara para a campanha havia telefonado, dizendo que eu estava com um hálito de cachaça insuportável. “Veja se beba quando não estiver em campanha”, aconselhou. Esse meu procedimento, tinha consciência, me prejudicava e prejudicava também o Fausto, que me havia indicado. Era quase certo que Moacyr, ao encontrá-lo, iria reclamar: “Fausto, você me recomenda um bêbado para ser meu assessor de comunicação”.
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Era assim. Por onde passava, deixava minha marca de alcoólatra, de cachaceiro, embora nunca irresponsável. Realizava o serviço direito, com categoria, mas sempre ficava essa nódoa do vício da bebida. Não conseguiria parar de beber, concluía. Até quando meu organismo iria suportar? Dizia tanto em cirrose hepática, mas eu nada sentia.
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Como era de se esperar, Moacyr perdeu para o candidato de Tortorello. No entanto, ele se tornara mais conhecido durante a campanha e, dois anos depois, sairia candidato a deputado estadual, sem sucesso. Ganharia, nas eleições seguintes, para vereador e provaria ser um exemplo de parlamentar, procurando sempre fazer o melhor pelo município e por seus moradores. Moacyr, não posso deixar de registrar, eu admirava e até invejava pela sua capacidade em mudar de mulher. Cansava de uma e arrumava outra, e cada vez mais jovem. A última vez que o vi, na Câmara de Vereadores de São Caetano, me revelou que agora decidira ficar com a atual, vinte anos mais nova que ele. Encontrara a mulher ideal, disse ele. A mulher dos seus sonhos. Fingi acreditar.
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Numa tarde, na sala de espera reservada para os pacientes do setor de Cabeça e Pescoço, enquanto aguardava ser atendido pelos doutores Ricardo Testa e Mauro Ikeda, interessei-me por uma revista esquecida na cadeira ao lado – ABCâncer, da Associação Brasileira do Câncer, editada sob a coordenação geral de Marília Casseb. Comecei a folheá-la quando uma reportagem de página dupla me chamou a atenção. O título: Quando a morte é inevitável, com texto de Eduardo Cosomano. Cita estudo da União Internacional do Câncer, segundo o qual o câncer mata “anualmente mais pessoas no mundo que a tuberculose, a malária e a Aids juntas”. A pesquisa também revela que em 2030 o número de doentes de câncer por todo o planeta deve chegar a trinta milhões, dos quais 18 milhões morrerão devido à doença, 50% a mais do que atualmente.
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Uma das pessoas ouvidas pela reportagem é a professora Maria Júnior Kováes, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, que observa: alguns pacientes sentem muita raiva, acham que é uma traição da vida. Outros acham que merecem. Às vezes, o paciente aceita e a família também. Mas, como fator fundamental, posso afirmar que oferecer espaço de escuta, tanto para o paciente como para seus familiares, é o início do caminho. Observa ainda que o câncer, por muitas vezes, gera um processo de culpa, no qual todos tentam resolver questões que estavam em aberto. É a psicóloga quem diz: “é muito importante tentar eliminar essa culpa. Nos pacientes mais velhos, grande parte da incidência da doença está relacionada ao estilo de vida da pessoa, que contempla hábitos como o fumo ou a bebida. Mas, às vezes não está. Por conta disso, o objetivo é trabalhar para a aceitação do fato, sem encontrar culpados”.
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Lida a reportagem, fiquei a pensar. Quando das primeiras entrevistas, os médicos que me consultaram foram logo perguntando se eu bebia e fumava. Respondi que não fumava há mais de uma década e estava quase o mesmo período sem beber nada contendo álcool. Diante de minha resposta, alegaram que eu adquirira câncer porque havia plantado a semente e agora colhia os frutos. E as crianças com menos de cinco anos que aparecem com câncer? Abusaram do fumo, da bebida? Melhor se conformar e lutar para vencer e, após pensar assim, logo fui chamado e recebi uma boa notícia: o tumor diminuíra com as sessões de rádio e quimioterapia e continuaria nesse ritmo regressivo até o final dos efeitos da medicação. Era, portanto, uma esperança de prolongamento da vida...
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Na próxima quarta-feira, o vigésimo segundo capítulo de "Memória Terminal", do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50.

(Edward de Souza).
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*Os comentários para este capítulo, escrito pelo saudoso jornalista José Marqueiz, foram suspensos. Agradecemos sua compreensão.
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