quarta-feira, 2 de março de 2011

TERÇA-FEIRA, 1 DE MARÇO DE 2011


Enquanto aguardava ser atendido pelo locutor francano que trabalhava na Rádio América, notei que um homem alto e forte aproximou-se da portaria e se fez anunciar em voz alta: “o diretor artístico da rádio me aguarda, sou seu amigo e vim fazer um teste para a vaga de locutor, anunciada”. Então havia uma vaga e eu não sabia. Não tinha como ficar contente com a notícia, afinal o cidadão apresentou-se como amigo do diretor da rádio, mesmo assim, encheu-me de esperança. Ainda na recepção, o candidato a vaga falava com desembaraço e convicção. Citava pessoas famosas que conhecia, países onde esteve, e dizia para a recepcionista, já com expressão aborrecida por aguentar tremendo chato de galocha, que falava fluentemente o inglês.

A bela recepcionista sentiu-se aliviada quando o diretor artístico pediu para ela conduzir o tal amigo e pretendente à vaga de locutor até a sua sala. A jovem disparou rapidamente, pedindo que ele a seguisse. E voltou lívida, deixando escapar essa frase: “aguento cada uma nessa rádio”. Comecei a rir e ela percebeu. Acalmou-se, abriu um lindo sorriso e ofereceu-me um café. Conversamos um pouco e contei a ela que também estava em busca de uma vaga para locução na rádio. A jovem recepcionista disse-me com franqueza que torceria pelo meu sucesso, mas achava difícil, porque mais de 30 locutores já haviam feito o teste em dias anteriores, entre eles, velhos profissionais de rádio.

A chegada do Adilson interrompeu nossa conversa. Cumprimentou-me efusivamente e convidou-me para acompanhá-lo. Contou-me no trajeto que havia trabalhado na Rádio Hertz de Franca, nos anos 60, uma concorrente da Rádio Difusora. Naquela época só havia aquelas duas emissoras de rádio na cidade. Foi uma conversa agradável entre eu e Adilson, que confirmou, a rádio estava à procura de um locutor. Iria levar-me até a sala do diretor artístico da emissora. Em minutos fui apresentado a ele pelo Adilson, mas não recordo seu nome. Pediu-me que aguardasse alguns minutos porque outro concorrente a vaga estava num dos estúdios fazendo um teste. Logo chegou a minha vez e fiz o que pediram. Assim que o teste terminou voltei à sala do diretor artístico que solicitou um tempo até que fossem feitas as avaliações de todos os candidatos testados naquele dia. Sentado confortavelmente na sala, como se fosse o dono da rádio, estava o amigo do diretor artístico, que havia feito o teste anterior ao meu. Seu primeiro nome era Carlos, fiquei sabendo.

Uma hora depois fui chamado e soube que de todos os candidatos apenas eu e o Carlos fomos selecionados. A rádio precisava apenas de um locutor, por isso seríamos novamente submetidos a um teste. O reprovado poderia até ser chamado em outra oportunidade, prometeu o diretor artístico. As cartas estavam marcadas. Carlos leu alguns pequenos textos em português e eu, uma lista com nomes de músicas em alemão, francês, italiano e inglês. Se tivesse tempo suficiente, o diretor artístico da rádio teria acrescentado nomes de músicas em polonês, japonês, chinês e dinamarquês. Pacientemente tentei, não deu. E não daria para nenhum locutor da época, por mais experimentado que fosse. Desconheço um só daquele tempo e mesmo hoje, que fale fluentemente quatro línguas. Cá entre nós. Hoje em dia não passaria por este vexame. Teria rasgado aquelas folhas e mandado o diretor pilantra enfiá-las no... Lixo, juro!

Despedi-me de Adilson Machado, que lamentou minha reprovação depois de ter superado quase todos os demais candidatos. Agradeci-lhe pela atenção e antes de sair do prédio da rádio, passei pela portaria. Queria despedir-me da jovem recepcionista e ainda agradecer-lhe pela atenção e gentileza comigo, durante o tempo em que fiquei na rádio. Ela estava ansiosa para saber o resultado do teste. Contei-lhe o ocorrido e a jovem, fitando-me com seus dois belos olhos azuis, lamentou: “temia por isso”. Pediu o número do meu telefone para contato. Hesitei, sabia que, a exemplo da TV Tupi, eu não seria chamado. Ela insistiu, entregando-me um cartão com seu nome e telefones: “ligue, sempre estou informada sobre uma nova oportunidade, quem sabe possa ajudá-lo”.

Na porta de saída da rádio, um minuto de silêncio. Reflexão, pensamento positivo. Era preciso manter a confiança e enfrentar a vida com a sensação da segurança conferida pela determinação e o espírito altaneiro de quem sabe que é possível superar imprevistos e vencer. Momento de colorir o horizonte com as cores da esperança e acreditar que tudo não passou de duas tentativas que não deram bons resultados naquele dia. Estava pronto para seguir o caminho de volta a Santo André. Um menino cruzou alegremente o meu caminho. Segurava um enorme rádio que funcionava a pilhas, sorriu de uma maneira contagiante, abanou a mão e desapareceu. A vida é este mesmo círculo, sempre renovado, entre o trabalho e nossos desejos de realizar os sonhos que nos movem.

Acostumado a se deitar muito cedo, meu tio mudou sua rotina naquela noite. Estava a minha espera na cozinha, com seu velho rádio ligado no programa do Moraes Sarmento, na Rádio Tupi de São Paulo. Queria saber como foi o meu dia. Contei tudo o que havia se passado e ouvi dele uma sugestão. Desistir momentaneamente de São Paulo e tentar uma rádio no ABC. Na manhã seguinte ele me apresentaria a um amigo seu, dono de uma rádio, com reais possibilidades de dar certo, então eu teria um emprego e a chance de mais tarde ser contratado por uma grande emissora de São Paulo. Meu tio Ivan, carinhosamente chamado pelos amigos de “Delegado”, era chefe dos fiscais da Prefeitura de Santo André e como todo o chefe que se preza, não fazia nada, assinava o ponto pela manhã e voltava à tarde para encerrar o expediente da mesma forma.
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Era divertido ver meu tio sair pela manhã para o trabalho – entenda assinar o ponto. Depois de um banho rápido e de tomar seu café, segurava uma enorme pasta que pesava horrores, nunca pude ver, mas com certeza carregada de chumbo, e seguia rumo a prefeitura, poucos quarteirões da casa onde morava, no centro de Santo André. Minha tia Dionir corria para o quarto dos fundos - a casa era alta - e da janela acenava se despedindo. Amoroso, ele respondia, esticando um dos braços. A impressão era que ficariam dias sem se ver. Meu tio entrava as 8h00, assinava o ponto e as 9h00 estava de volta, isso quando não resolvia dar um passeio a pé pelo centro da cidade. Enquanto esperava a volta do marido, minha tia tocava acordeon.
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Naquela manhã, no começo dos anos 70, fiquei esperando sua volta e fomos ao encontro deste seu amigo, dono da Rádio Clube de Santo André, atual Trianon de São Paulo. Tratava-se de José Astolphi (nada a ver com o árbitro de futebol), na verdade, sócio na emissora com Antonio Del Fiol, conhecido radialista da Jovem Pan de São Paulo, falecido em 2002. Del Fiol destacou-se como o mais famoso garoto-propaganda da TV brasileira, quando por décadas foi porta-voz das campanhas publicitárias do saudoso Mappin e também do Jumbo Eletro. A Rádio Clube ficava na Rua Oliveira Lima, hoje calçadão coberto de Santo André. Não precisamos entrar, o amigo do meu tio estava num café, ao lado da Rádio Clube. Astolphi era um senhor de idade, vestia um terno escuro, enorme para o seu tamanho, ficando a nítida impressão que o defunto, ex-dono daquelas vestes, era bem maior que ele. Como não abotoava o paletó e carregava alguma coisa pesada num dos bolsos, um lado ficava bem maior que o outro. Para resumir, era bem desengonçado. E mal encarado. Assim que fui apresentado a ele, olhou-me da cabeça aos pés, como se estivesse vendo o ET de Diadema. Quando soube que eu era locutor, faltou apenas dizer: “isso aí?” Mesmo assim nos convidou para entrar na rádio e garantiu, para minha surpresa, que eu teria emprego. Antes faria um teste, caso não fosse aprovado como locutor, poderia oferecer-me uma vaga no jornalismo, precisava de um redator de notícias...
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*Edward de Souza é jornalista, escritor e radialista
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*Acompanhe nesta quinta-feira o quarto capítulo da série, “O dia em que gravei o Jornal Nacional”.
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