segunda-feira, 18 de maio de 2009

NAQUELE TEMPO NEM TUDO ERA DOURADO

Milton Saldanha
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AH, OS BAILES DE ANTIGAMENTE...
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Comecei a dançar aos 14 anos, naquelas festinhas de garagem dos anos 50 e 60, regadas a cubra libre (coca-cola, gelo, rodela de limão e uma dose moderada de pinga). Rolavam em intermináveis tardes domingueiras (o tempo antes parecia mais longo), sob os olhares censores de mães que conversavam sentadas num cantinho, simulando distração, quando estavam mesmo era de olho nos rapazes loucos por um bom amasso em suas filhas. O som provinha de LPs de vinil, geralmente com seis faixas de músicas de cada lado, que rodavam em grandes eletrolas de madeira e eram parte do mobiliário da casa. As eletrolas mais sofisticadas tinham dois alto-falantes que dividiam o som. Se hoje isso é banal, naquele tempo era o máximo em tecnologia.
Os rapazes, de cabelo puxado e engomado, usavam ternos e sapatos bem lustrados. Bastavam algumas nuvens no céu para, preventivamente, acrescentarem à indumentária guarda-chuvas pretos e enroladinhos, que manuseavam como se fossem charmosas bengalas. O chapéu já entrava em decadência, mas os mais velhos, como meu pai, mantinham o hábito. As meninas iam com vestidos bem comportados, que desciam abaixo do joelho. Decote ousado ou costas de fora, nem pensar. E jamais calça comprida, seria um escândalo. O jeans começava a aparecer e a se espalhar, mas as mulheres ainda demoraram algum tempo para aderir. Mas jamais iriam numa festa em jeans. O maior estímulo veio do cinema de Hollywood. Se atrizes famosas podiam, ainda mais americanas, todas também podiam. Pode parecer bobagem, mas foi um símbolo de liberação feminina. Nas ruas, por onde circulavam ruidosos bondes elétricos, com seus motorneiros e cobradores de quepe e farda amarela, começavam a surgir os primeiros espécimes da recém nascida indústria automobilística brasileira, como o Gordini, DKW, Fusca, Kombi, caminhões Ford, que se misturavam aos mais variados modelos importados que ainda circulavam em grande quantidade. Para proteger a indústria nacional a importação foi totalmente proibida. A construção de Brasília, com seus imensos canteiros de obras, era tema de todas as edições da revista Manchete, enquanto O Cruzeiro dedicava páginas aos concursos de Miss Brasil e Miss Universo. A Tupi, em ondas curtas, repleta de chiados, era a rádio de maior alcance. O Carnaval era tão forte, e realmente popular, que a Tupi mantinha o ano inteiro um programa diário com o nome de “Sempre é Carnaval”. Pulamos muitos carnavais fantasiados, em pequenos blocos de amigos, ou mascarados.
A soja e suas possibilidades era restrita a poucos pesquisadores e curiosos, enquanto o café se mantinha como principal produto de exportação. A renúncia irresponsável de Jânio Quadros, em agosto de 1961, quase jogou o país numa guerra civil. O Rio Grande se levantou em armas e evitou a antecipação da ditadura. Vou contar isso aqui no blog brevemente. O sucessor, João Goulart, montou um ministério híbrido, onde misturava os mais típicos expoentes do conservadorismo paulista, como Carvalho Pinto, com estrelas da esquerda intelectual, como Celso Furtado e Darci Ribeiro. A salada não impediu a eclosão do golpe militar de 1964, que vinha sendo tentado e planejado desde a crise de 1954, que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas. Para orgulho nacional, conquistamos a primeira Copa do Mundo, na Suécia, em 1958, revelando um garoto de 17 anos com o apelido de Pelé. Quatro anos depois, a segunda Copa, no Chile, com um desempenho de Garrincha jamais igualado por nenhum outro jogador em todos os tempos. Viajava-se muito sobre trilhos, em alguns casos com ousadia. Havia até um trem de passageiros, o Paulista, com Maria Fumaça, entre São Paulo e Porto Alegre. E duas empresas de cabotagem (navegação nacional), a Costeira e o Loyd Brasileiro, que transportavam simultaneamente cargas e passageiros, subindo e descendo toda a costa, para o Norte até Manaus, entrando pelo rio Negro; para o Sul até Porto Alegre, entrando pela Lagoa dos Patos. Minha família viajou duas vezes na Costeira, nunca esqueci, foram incríveis e belas aventuras. Eram navios precários e lentos, balançavam muito. Levamos 15 dias de Pelotas ao Rio, com várias escalas, no Itatinga. Viagem que hoje, de avião, leva uma hora. Um ano depois voltamos no Itaquatiá, fazendo tudo de novo. Nasceu disso meu fascínio por ferrovias e navios.
Era o Brasil e os tais anos dourados, que hoje nostálgicos tentam resgatar em bailes temáticos que misturam as épocas, confundindo modas e hábitos dos anos 60 com seus antecessores dos anos 50 e sucessores dos anos 70. Alguns confundem também o cardápio musical. Nos anos 60 a gente dançava ao som principalmente de Miltinho, King Kole, Caubi Peixoto, Maysa, Nelson Gonçalves, Frank Sinatra, Carlos Gardel, clássicos das big bands de New Orleans e dos grandes musicais americanos. Enquanto isso, uma garota tentava a sorte em famoso programa dominical de calouros da rádio Farroupilha (Porto Alegre), o Clube do Guri. Seu nome: Elis Regina.
Certo dia, em Santa Maria, chegou com estardalhaço um grande circo. Faziam carreatas pela cidade, exibindo animais em jaulas e palhaços fazendo estrepolias em caminhões coloridos. A maior atração era a banda, que prometida revelar um novo e revolucionário ritmo. O tal ritmo, diziam, era irresistível, ninguém agüentava ficar parado, todo mundo iria se sacudir. Fomos ao circo com a ansiedade de conhecer a tal hipnose sonora. Será que ficaríamos em nossas cadeiras ou sairíamos dançando freneticamente? O nome, recém surgido nos Estados Unidos, tirado de uma gíria americana que significava “fazer amor no banco traseiro do carro”, era Rock and Roll. Quase no final do espetáculo, finalmente, a bandinha atacou. Os músicos tocaram em pé, balançando o corpo e quase se arrebentando, vermelhos, de tanto esforço para tocar rápido e alto com seus metais. Não saímos do lugar, apáticos. Foi uma grande decepção.
Nossos bailinhos estavam longe de ser a maravilha que alguns hoje tentam contar. Havia preconceito de todo tipo: racial, físico, de idade, condição social. Um homem não podia dançar com uma mulher mais alta, ou mais velha. Negros e brancos não se misturavam, nem as classes sociais. As roupas eram incômodas, e impostas por uma etiqueta opressora. Dentro dos ternos com ombreiras, que nos deixavam quadrados, todos escuros e de tecidos pesados, a gente suava muito. O ar condicionado era uma novidade ainda restrita a poucos ambientes luxuosos do Rio e São Paulo. Em Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul, onde eu morava, nem pensar. Quando minha família foi morar no Rio, em 1955, recordo que os ônibus da Cometa tinham ar condicionado na linha SP-Rio. A empresa esnobava com a informação escrita na lataria. Nós ficávamos muito curiosos querendo experimentar um ar condicionado. No calor carioca havia uma delícia recentemente lançada, vendida nas ruas só por ambulantes em bonitinhos carrinhos amarelos. Os sorvetes Kibon, com seu picolé Chicabon que enlouquecia a criançada. Levou um tempão para se espalhar pelo Brasil.
De repente surgiu uma novidade, o radinho de pilha. Os homens iam para o footing no centro de Santa Maria carregando seus radinhos com antenas esticadas. Era um grande status ter um radinho daqueles. O segredo da engenhoca era algo chamado “transistor”, que permitia, pela primeira vez na História, ouvir rádio sem necessidade de um fio ligado à tomada. Alguns dias depois anunciaram outra novidade: a TV chegaria à cidade. A maioria da população nunca tinha visto uma TV, então algumas lojas colocaram aparelhos ligados nas vitrines, sem imagens, claro, só com chuvisco. Como as estações só tinham alcance municipal, tiveram a idéia de fazer linhas com aparelhos retransmissores em postes. A imagem, emitida de Porto Alegre, ia diluindo pelo caminho e chegava precária nas antenas do interior, com vários segundos de atraso. Tudo, lógico, só em preto e branco.
O maior impacto naqueles anos 60 foi o lançamento do primeiro satélite artificial em torno da terra, pelos russos. O Sputinik, do tamanho de uma bola de basquete e cheia de antenas, emitia um som, bip, bip, bip, que virou marchinha de Carnaval e deu motivo para todo tipo de piada. O satélite ficou muitos meses rodando em torno do planeta. Todas as noites, quando o céu estava limpo, nós víamos sua passagem sobre nossa cidade, várias vezes, como se fosse uma pequena estrela caminhando lentamente pelo espaço.
As fantasias de então sobre o futuro tomavam como referência o ano 2000, que nos parecia absurdamente distante. Os carros e as cidades do ano 2000 eram desenhados das mais variadas formas futurísticas, com todos os exageros, e, lógico, nenhuma delas correspondeu à realidade.
Nossos bailinhos, caseiros e nos dois melhores clubes da cidade, estavam longe de ser tão bons quanto os bailes de hoje, em todos os sentidos, principalmente de integração racial e social. Mas era o que a gente tinha e naquele tempo achava legal. Eles jamais nos permitiriam prognosticar o que um dia aconteceria com a dança de salão, transformada num verdadeiro movimento artístico, educativo e de convivência. Nem eu poderia imaginar que continuaria sempre dançando, e amando como nunca fazer disso uma das razões da minha felicidade.
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Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho da fronteira, é jornalista profissional, com mais de 40 anos de atividades. Começou em Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 1963. Foi repórter e exerceu cargos de chefia em alguns dos principais veículos do Brasil, como Rede Globo, jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, Diário do Grande ABC, revista Motor 3, Folha da Manhã (RS) e outros. Foi repórter em Última Hora, trabalhando com Samuel Wainer. Já assinou artigos e reportagens em mais de uma centena de publicações de todo o Brasil. Trabalhou também em assessoria de imprensa, para empresas e entidades públicas, como Ford Brasil, Conselho Regional de Economia e IPT- Instituto de Pesquisas Tecnológicas. É autor do livro “As 3 Vidas de Jaime Arôxa”, pela Editora Senac Rio, e participou como cronista da antologia “Porto Alegre, Ontem e Hoje”, pela Editora Movimento, do Rio Grande do Sul. Assinou também orelhas de diversos livros sobre dança e música, de autores brasileiros. Um ano antes de se aposentar, quando era editor-chefe do Jornal do Economista, em São Paulo, fundou o jornal Dance, que em julho completa 15 anos. Tem novo livro pronto, ainda inédito. É “Periferia da História”, onde conta de memória 45 anos da recente história brasileira. Trabalha em novos projetos editoriais, como jornalista e escritor. Na área de dança, organiza uma coletânea com os melhores editoriais publicados no Dance. Atualmente prepara um livro sobre Maria Antonietta, grande mestra da dança de salão carioca, que morreu recentemente. Apaixonado por viagens conhece quase todo o Brasil e já visitou cerca de 40 países. Por hobby e paixão é dançarino de tango.
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