segunda-feira, 20 de abril de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Milton Saldanha
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INÉDITO
Capítulo XXV
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A vingança do Cabral
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A Última Hora, fundada e dirigida por Samuel Wainer, formava uma rede nacional. Com o mesmo título, logo em azul, identidade visual e seções, até onde lembro era editada no Rio, São Paulo, Recife, Porto Alegre. Depois do golpe de 64 foi fechada e mais tarde reaberta em São Paulo. Em Porto Alegre resultou na atual Zero Hora. Fui repórter da Última Hora, nesta segunda fase, trabalhando com o Samuel Wainer, nome lendário e polêmico do jornalismo brasileiro, que colecionava tanto amigos como inimigos. Só que nessa segunda fase ele não era mais dono do jornal e sim empregado do Frias, do grupo Folha de S.Paulo, que havia adquirido o título. Naquela redação convivi diariamente com nomes notáveis: Plinio Marcos, Antonio Contente, Lourenço Diaféria, e um vasto time de antigos jornalistas com muita estrada e quilometragem percorrida. Eu estava naquela fase de transição, um bom repórter, mas ainda meio foca. Já estava no jornal quando o Samuel Wainer assumiu a direção. Lembro-me que o Otávio Frias chegou com ele na imensa e ruidosa redação, bateu palmas pedindo silêncio: “O bom filho a casa torna”, disse Frias, anunciando o novo diretor. Ali me aproximei de alguns veteranos, quase tietagem, em busca das suas histórias e experiências. Um deles era Cabral, que fumava cigarro com piteira e gostava de vestir coloridas camisas de seda. Cabral, diziam, foi uma lenda do jornalismo policial. Não sei se era verdade, mas contavam que chegou a localizar bandido em morro antes da polícia. Denunciava e ficava no local esperando a prisão para cobrir como furo. Dele contavam também o seguinte episódio:
Mulherengo, Cabral gostava de cortejar moças bonitas com belos jantares, em restaurantes sofisticados. Não tomava o cuidado de checar antes os preços, mesmo ganhando mal como todo mundo naquela época. E foi assim que levou mais uma para jantar, com direito a entrada, camarão, vinho italiano, sobremesa. Quando pediu a conta levou um susto. O preço era um absurdo, consumia boa parte do salário que ganhava num mês inteiro de trabalho. Para não dar vexame agüentou no osso. Pagou com cheque, furioso, e se retirou com sua convidada. Nos dias seguintes aquilo ficou martelando na cabeça de Cabral. Estava realmente revoltado com o absurdo da conta. “Isso não vai ficar assim”, pensou, e teve uma idéia. Chamou um contínuo da redação, prometeu-lhe uma caixinha, e pediu que fosse ao restaurante para fazer reserva de jantar para quatro pessoas. Mandava até um cheque como sinal, por garantia, e pediu ao rapaz que voltasse com a nota fiscal.
Dia seguinte, quase duas horas antes do horário previsto na reserva, requisitou uma Kombi da frota do jornal e saiu. Mandou que o motorista seguisse para os baixos de viadutos da Zona Oeste onde precariamente se abrigavam grupos de mendigos. Chegou e anunciou: “estou convidando três de vocês que queiram fazer o melhor jantar das suas vidas. É só embarcar, é tudo por minha conta”. O grupo se formou em torno da Kombi, todos queriam ir. Cabral então selecionou os três privilegiados, procurando entre eles os mais feios, esfarrapados e mal-cheirosos. O restaurante, naquele horário, já tinha bom movimento e a mesa de Cabral estava prontinha, com cartão de “reservada”. Quando ele entrou com seus convidados foi um choque geral. Silêncio. Garfos e facas pousaram silenciosos nas mesas. Olhares incrédulos de todos os lados. Cabral acomodou-se com os mendigos e pediu o cardápio para os pedidos. O dono, ou gerente, surgiu do nada: “O que o senhor está fazendo? Não pode ficar aqui com essas pessoas. Vou chamar a polícia”. E Cabral: “Isso, chama a polícia, é isso que eu quero, escândalo. Vou chamar também meus colegas dos jornais. Discriminação racial e social é crime. Estes senhores são meus convidados, cidadãos como qualquer brasileiro, e parte do jantar já está até paga, está aqui a nota fiscal”.
Nesse meio tempo, vendo a encrenca armada, e não agüentando o odor que se espalhou pelo recinto, mais da metade dos clientes já se retirava, uns rindo, outros furiosos. O gerente capitulou. Mandou servir, postando-se de braços cruzados e cara amarrada a alguns metros da mesa. O jantar foi uma cena dantesca, de bocas abertas desdentadas mastigando vorazes, líquidos e babas escorrendo pelos cantos dos lábios, mãos imundas avançando sobre copos e travessas cintilantes. Os garçons ficaram num grupo à distância, alguns usando lenço para tampar o nariz, outros de costas para a mesa, repugnados. E Cabral recostado na cadeira, fumando com sua piteira, sorrindo, feliz.
Quando terminaram, fartos, e sozinhos na casa, o gerente se aproximou. “Senhor Cabral, pelo amor de Deus, nunca mais faça isso de novo. O senhor pode nos arruinar. Só hoje perdi vários clientes. Mas a conta está certa, o senhor não precisa pagar mais nada. Volte quando quiser, traga sua noiva, será convidado da casa”.
“Jamais – replicou Cabral – vocês me roubaram descaradamente da outra vez e agora dei o troco. Estamos quites. Agora fique tranqüilo, nunca mais pisarei nesta casa”.
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*Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho, torcedor do Inter, começou no jornalismo aos 17 anos, em Santa Maria (RS). Trabalhou na grande imprensa de Porto Alegre e de São Paulo. Foi da Folha da Manhã (RS), Diário do Grande ABC, Agência Estado, Estadão e JT, Rede Globo, Rádio Jovem Pan, Última Hora (com Samuel Wainer), entre vários outros veículos. Foi também assessor de imprensa da Ford, do IPT e do Conselho Regional de Economia. Tem um livro publicado, "As 3 Vidas de Jaime Arôxa"; participou de uma antologia de escritores gaúchos; um livro pronto e ainda inédito, "Periferia da História", onde conta de memória 45 anos da recente história do Brasil sob um ângulo totalmente inédito; trabalha num livro sobre Reforma Agrária. Pouco antes de se aposentar fundou o jornal Dance - http://www.jornaldance.com.br/
– que já tem um filhote regional em Campinas, e que neste 2009 completa 15 anos.
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NR: Prezados amigos e amigas. Com pouco mais de três meses, o sucesso deste blog pode ser constatado pelo número de visitas (mais de 22 mil) e de comentários, chegando próximo a 50 em determinados artigos, como esses dois últimos escritos pelos jornalistas J. Morgado e Oswaldo Lavrado. Nossa intenção era deixar livre os comentários para que todos pudessem ler e interagir. No entanto, caso excessos cometidos continuem, seremos obrigados a monitorar os comentários. Recebi vários e-mails de pessoas reclamando e sentindo-se ofendidas. Algumas não entendendo a brincadeira que criamos ao nomear Francisco Heitor como “coordenador” do blog. Heitor, na verdade, nunca teve a intenção de ofender ninguém e acompanhamos todas as suas intervenções, mas sim de brincar com alguns erros cometidos pelos participantes do blog. Fica suspensa sua função, pelo fato de ter sido mal entendido. Quanto ao padre, ou a pessoa que se faz passar por ele, não conhecemos. Pedimos paciência entre todos, afinal, também acompanhei suas participações no blog e nada vi que pudesse ofender ou prejudicar ninguém. Vamos tentar deixar livre, por 48 horas, os comentários. Caso abusos persistam, iremos monitorá-los e só publicaremos os que estejam de acordo com a seriedade e respeito necessários para a continuidade desse blog. Grato!
Edward de Souza
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