quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

DO BAÚ DAS PALAVRAS

Relendo o poema Receita pra lavar palavra suja, de Viviane Mosé, lembrei-me de uns textos-poemas que escrevi há algum tempo, em celebração à palavra, para minha coluna no jornal Folha Regional, de Santiago. Republico-os.

A palavra desnecessária

A palavra desnecessária é torpe, vil e abunda. Grassa e conspira.
Consome quem constantemente a articula e escreve. Humilha os que a ouvem e leem.
A palavra desnecessária é fel. Fere fundo. Vilipendia o dia a dia. Faca afiada. Acerta fundo.
A palavra desnecessária é matriz da violência. Ferro que queima e teima. Dilacerando tudo.
Palavras desnecessárias nós ouvimos todos os dias. Até já nos acostumamos com elas. Não poderíamos. Palavras desnecessárias são um argumento contra a vida. Invalidam tudo.
E o pior é que, geralmente, quem fala a palavra desnecessária nem tem consciência do que está dizendo ou, quem sabe, é só o que sabe dizer...
Mas a palavra desnecessária ofende, machuca, diminui o Ser que a disse, diminui o Ser que somos, porque implica em dor, em espanto, em denso pranto mesmo não chorado a olhos vistos, represado.
Desnecessária é a palavra que afronta, que magoa, que atormenta. Tormenta de letras desfalcadas de sentido. Escuridão profunda. Funda gruta de terror eu sinto.
Desnecessária é a palavra que corrompe, que compele ao delito. Que afrouxa e rompe as amarras, caras teias que tecemos no tempo, fios do céu ao chão se vão, subvertendo a mão que nos separa do conflito.
Desnecessária é a palavra que diz guerra, tortura, explosão, morte do irmão, sangue, aço retorcido, asa partida, torre desabada, sonho abandonado. Retumbante som.
Uma pergunta que não cala. Por que é tão falada a palavra desnecessária?
É por vontade?
É por maldade?
É por insensibilidade?
Ou já se acha descartada a palavra necessária?
Onde está escondida a palavra necessária?
Aquela que une, reúne, reunifica e ressuscita os nossos sonhos. Aquela que soma e não divide. Aquela que atrai e aproxima. Aquela que cria, recria e revigora.
Onde está aquela palavra que dá vida?
Está aqui, aí, dentro de nós. Vamos reaprender a falar a palavra necessária?
E a usar a borracha mental para apagar aquela que nos faz morrer um pouco cada vez que a pronunciamos, fadando-a ao lixo, escória, cinza da palavra, alijando-a do dicionário humano Ser que somos.

A palavra necessária

A palavra necessária é rara. E real o seu esplendor.
A palavra necessária é essencial porque única e unívoca em significante e significado.
Necessária é a palavra de conforto. A palavra de carinho. A palavra de solidariedade. Na medida e na hora certas. Morno alento para quem é sedento. Da palavra necessária.
Necessária também é a palavra dura. Severa. Áspera. Necessária para corrigir, recuperar, reencaminhar quem dela precisa e não sabe. Da palavra necessária. Dita com frio talento, se torna implemento para a retomada do fio.
A palavra necessária é composta de luz essencial. Clara, translúcida de sons e imagens e cores e valores imprescindíveis à vida.
Palavra às vezes morna às vezes fria mas duplamente necessária. Para autor e interlocutor.
Uma pergunta que não cala. Por que é tão rara a palavra necessária?
Por que é tão difícil de entoar a palavra necessária?
Falta vontade?
Falta coragem?
Ou já se acha descartável a palavra necessária?
Não. Criticamente analisando, a palavra necessária é vida válida. Vislumbre do por-vir. Horizonte.
Inválida é a omissão. O não-falar que invalida nossa vida, que a torna bruma, não brisa. Opaca, não lisa. Escura, não pura.
A palavra necessária é rio em desafio constante de seguir em frente, de encontrar gente.
A palavra necessária abomina o limitante. É cria-ativa. Magia polissêmica da linguagem universal, ordenada, harmônica, simbiótica, mística. Muito mais do que poema simétrico. Rítmico.
Muito mais do que rito. Real rima do eu que com o tu nos torna um só.

20 comentários:

  1. Bom dia, amigos e amigas!

    Tentando cumprir a palavra empenhada com o amigo Edward Souza de manter o seu blog "ativo e operante" enquanto ele descansa, na falta de um texto de nossos colegas que aqui também operam, abri o baú das palavras e encontrei alguns escritos em que exercito prosa-poesia, ou poesia-prosa, como quiserem identificar. Nada mais do que metalinguagem - a palavra falando da palavra - a desnecessária e a necessária, que pontuam a nossa vida, conforme as utilizamos.

    No início do texto, falei do poema Receita pra lavra palavra suja, de Viviane Mosé. Ei-lo:

    Mergulhar a palavra suja em água sanitária.
    Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
    Algumas palavras quando alvejadas ao sol
    adquirem consistência de certeza. Por exemplo a palavra vida.
    Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
    que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar
    e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente.
    São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.
    Dizem que limão e sal tira sujeira difícil, mas nada.
    Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão.
    Agora nunca vi palavra tão suja como perda.
    Perda e morte na medida em que são alvejadas
    soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura,
    que é capaz de esvaziar o vigor da língua.
    O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molho
    em um amaciante de boa qualidade. Agora, se o que você quer
    é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente
    sabão em pó e máquina de lavar.
    O perigo neste caso é misturar palavras que mancham
    no contato umas com as outras. Culpa, por exemplo,
    a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha.
    Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo,
    sendo uma palavra intensa, quase agressiva, pode,
    o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade.
    Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
    Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
    sob o risco de perderem o sentido.
    A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva,
    produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.
    Muito importante na arte de lavar palavras
    é saber reconhecer uma palavra limpa.
    Conviva com a palavra durante alguns dias.
    Deixe que se misture em seus gestos, que passeie
    pela expressão dos seus sentidos. À noite, permita que se deite,
    não a seu lado mas sobre seu corpo.
    Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne,
    prolifera em toda sua possibilidade.
    Se puder suportar essa convivência até não mais
    perceber a presença dela,
    então você tem uma palavra limpa.
    Uma palavra limpa é uma palavra possível.

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  2. Olá Nivia e amigos deste blog (a)...
    Uma obra prima esse texto, minha querida amiga. É preciso que todos, que sempre participam conosco neste blog, façam como eu fiz, leiam e releiam. Além da beleza do texto e das colocações das palavras, uma lição para que aprendamos a usar as palavras necessárias e esqueçamos, sempre que possível, as desnecessárias.

    Extraio dois tópicos deste texto magnífico da Nivia. O primeiro sobre a palavra desnecessária, leiam:
    "A palavra desnecessária é torpe, vil e abunda. Grassa e conspira.
    Consome quem constantemente a articula e escreve. Humilha os que a ouvem e leem.
    A palavra desnecessária é fel. Fere fundo. Vilipendia o dia a dia. Faca afiada. Acerta fundo.
    A palavra desnecessária é matriz da violência. Ferro que queima e teima. Dilacerando tudo".


    Agora a palavra necessária, acompanhem:
    "Uma pergunta que não cala. Por que é tão rara a palavra necessária?
    Por que é tão difícil de entoar a palavra necessária?
    Falta vontade?
    Falta coragem?
    Ou já se acha descartável a palavra necessária"?

    Só me resta aplaudí-la, Nivia, brilhante!

    Um forte abraço...

    Edward de Souza

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  3. Ôi Nivia, que coisa mais linda, creia!
    Como sugeriu o Edward, é preciso ler e reler e depois fazer uso sempre das palavras necessárias e esquecer as desnecessárias. Como simplicaria nossas vidas soubéssemos usar na hora certa as palavras necessárias... E como fariam bem às pessoas ouvi-las...

    Também deixo meus aplausos e meus cumprimentos pelo texto impecável!

    Beijos Nivia!

    Liliana Diniz - FUABC - Santo André - SP.

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  4. Olá Nivia


    Um texto fantástico e necessário! Necessário para que as pessoas deixem de ser “caretas” e se conscientizem da inutilidade do desnecessário. Palavras desnecessárias que machucam nossos ouvidos e nossos olhos além dos demais sentidos, incluindo ai nossa sensibilidade.
    Pensamentos como esses escritos através de um poema (absolutamente necessário) ajudam na conscientização das pessoas para o “desnecessário”.

    Obrigado gaúcha

    Paz. Muita Paz.

    J. Morgado

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Adorei, Nivia...
    Por isso, além de jornalismo, curso letras, quem sabe um dia eu consiga escrever tão bem como você... Ou quase, seria ótimo!

    Bjos,

    Gabriela - Cásper Líbero - SP.

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  7. Boa tarde, Nivia.
    Certamente você estava inspiradíssima ao escrever sobre as palavras necessárias e as desnecessárias. Um primor de texto. Um colírio para os olhos ler o que você escreve. Meus parabéns!

    Eurípedes Sampaio - Jundiaí - SP.

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  8. Divino, Nivia, meus cumprimentos pelo texto. Um presente para todos nós que adoram esse blog. E que aprendamos a usar as palavras necessárias... Sempre!

    Beijussss

    Talita - UNISANTOS - Santos

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  9. Boa tarde, Nivia Andres!
    Muito bom seu texto. Peço-lhe permissão para imprimi-lo e fazer minha sogra ler, pelo menos umas 30vezes. Se ela perceber que não devemos nunca usar as palavras desnecessárias, estou feito. Vou economizar uma nota preta no final do mês, quando chegar a conta telefônica. A danada gruda no telefone e só pronuncia palavras desnecessárias. O interlocutor, creio, também, afinal para aguentar duas horas grudada num telefone, só banalidades devem estar sendo faladas, no mínimo. Palavras desnecessárias, para a alegria da Companhia telefônica.

    Abraços, Nivia,

    Miguel Falamansa - Botucatu - SP.

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  10. LUIZ ANTÔNIO DE QUEIROZquarta-feira, 10 fevereiro, 2010

    Cara Nívea,

    Parabéns pelo texto.
    Precisamos sempre nos criticar e não criticar o outro, o que geralmente fazemos de forma velada.
    Tudo depende da intenção. Qual a intenção de estar falando ou escrevendo? Como disse Jesus: "A boca fala do que está cheio o coração."

    Abraço fraterno

    Luiz Antônio de Queiroz
    Franca-SP

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  11. Nivia, se nossos políticos usassem as palavras necessárias quando sobem aos palanques, aos invés das desnecessárias, conseguiriam transmitir mais confiabilidade aos eleitores. Soma-se às palavras necessárias, outras, como sinceridade, trabalho e principalmente honestidade.
    Seu texto é maravilhoso e merece todos os elogios que está recebendo dos amigos e amigas deste blog.

    Abraços,

    Tanaka - Osasco - SP.

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  12. Certa vez um Sultão sonhou que havia perdido todos os dentes. Ele acordou assustado e mandou chamar um sábio para que interpretasse o sonho.

    - Que desgraça, Senhor!, exclamou o sábio. - Cada dente caído representa a perda de um parente de Vossa Majestade!

    - Mas que insolente, gritou o Sultão. Como se atreve a dizer tal coisa?!

    Então, ele chamou os guardas e mandou que lhe dessem cem chicotadas. Mandou também que chamassem outro sábio para interpretar o mesmo sonho.

    O outro sábio chegou e disse:

    - Senhor, uma grande felicidade vos está reservada! O sonho indica que ireis viver mais que todos os vossos parentes!

    A fisionomia do Sultão se iluminou e ele mandou dar cem moedas de ouro ao sábio. Quando este saía do palácio um cortesão perguntou ao sábio:

    - Como é possível? A interpretação que você fez foi a mesma do seu colega. No entanto, ele levou chicotadas e você, moedas de ouro!

    - Lembre-se sempre... respondeu o sábio, TUDO DEPENDE DA MANEIRA DE DIZER AS COISAS... E esse é um dos grandes desafios da Humanidade.

    É daí que vem a felicidade ou a desgraça, a paz ou a guerra. A verdade deve ser dita sempre, não resta a menor dúvida, mas a forma como ela é dita é que faz a diferença.

    Renato Cardoso de Mello - Cuiabá/MT

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  13. Ôi Nivia, que lindo!
    Com essa postagem você mostra claramente que sabe utilizar as palavras necessárias para a produção de textos claros, enxutos e maravilhosos. Encantador!

    Beijos,

    Andressa - Cásper Líbero - SP.

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  14. Ôi Nivia, belo texto, amei...

    Na capa de um antigo caderno que tenho ainda do último ano primário, certa feita eu encontrei esse texto e anotei. Diz o seguinte: "Palavras desnecessárias machucam mais que tapas. Tapas ferem o corpo, palavras desnecessárias ferem a alma. O corpo se recupera fácil, a alma não.

    Porque magoar alguém com palavras duras, feias e desnecessárias se sempre se tem a opção de não fazê-lo? Ninguém gosta de ser magoado, então ninguém deveria magoar. Só usar as palavras necessárias. Basta!

    Bjussss,

    Tatiana - Metodista - SBC

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  15. ANA CÉLIA DE FREITAS.quarta-feira, 10 fevereiro, 2010

    Boa noite Lívia,tudo bem?
    Texto maravilhoso,simplesmente irretocável.
    Menina,como seria bom para todos, se utilizássemos só palavras necessárias,mas infelizmente muitas vezes acontece o contrário.Pior ainda quando as pessoas falam o que querem sem titubear,e faz um estrago,então muitas vezes fica difícil voltar atrás.
    Lembro que um dia,recebi uma criança em minha sala, e fui avisada pela direção da escola na qual ela frequentou antes,que a mãe era uma pessoa chata,insuportável.Ao receber um questionário da mãe,sobre a criança,percebi que a letra era linda,então fui logo elogiando,e sempre que possível fazia elogios e assim como para outras mães,eu mandava frases de auto estima,reflexivas,auto astral,enfim ela nunca se mostrou insuportável,adorava receber elogios,e sempre dizia algo bom sobre meu trabalho e desempenho.Resultado:Nos tornamos grandes amigas.
    Muitas vezes as pessoas estão carentes,e necessitam de uma frase de carinho.
    Beijossssssssssssssss.
    ANA CÉLIA DE FREITAS.

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  16. Boa noite, Nivia!
    Irretocável seu texto. Como hoje não temos polêmica no blog e sim maravilha, parece-me que o pessoal se esqueça de, ao menos, deixar uma frase mais que necessária, que é essa: VOCÊ É FANTÁSTICA, NIVIA!

    Bjos,

    Bruna - Universidade Federal de Juiz de Fora/MG

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  17. NECESSÁRIO dizer, Nivia, que eu amei o texto que você escreveu. M a r a v i l h o s o!!!

    Bjos,

    Vanessa - PUC - SP.

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  18. Amigos do blog de ouro bôa noite.
    Não poderia deixar de comentar a beleza de texto da amiga Nivia Andres, Maravilha,para mostrar que nem sempre em nósso blog existem polemicas,pois em seu texto nada há para discordar.
    Abraços Nivia, e continue capitaneando o "nosso" blog com a competência demonstrada,aguardando o retorno do chefe Edward,que sabe muito bem que o blog de ouro está em bôas mãos.
    Abraços também aos demais articulistas e comentaristas do "nosso" blog.

    Admir Morgado
    Praia Grande SP

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  19. Amigos e amigas!

    Agradeço muitíssimo pelas referências ao texto. Creiam que é um grande estímulo e aprecio demais esta interação diária, produtiva, amistosa.

    Como o Edward já comentou, é bem difícil mantermos o nível do blog. A exigência é grande e nós somos responsáveis por superar as expectativas. Nem sempre conseguimos, mas é o nosso desejo perene. Por isso, é maravilhoso quando temos retorno, não só para elogios, mas para críticas e sugestões. Para que possamos seguir em frente.

    Obrigada pelo carinho de todos. Vale muito e é palavra sempre necessária.

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