terça-feira, 3 de março de 2009

DESABAFO: MÉDICOS & CABELEIREIROS

Este foi meu último diálogo com um profissional que vejo quase todos os meses. Felizmente, não sofro de nenhuma doença crônica que precise de acompanhamento periódico. Nem tampouco sou hipocondríaco ou faço exames regulares com receio de algum mal maior. Este foi apenas um fragmento de conversa com o profissional com quem corto o cabelo há mais de 10 anos. Saindo do salão deixei um cheque no valor de R$ 40,00 referentes ao corte e mais 10% de gorjeta, como meu pai me ensinou: “Filho, estes profissionais ficam bem mais motivados a trabalhar, se você demonstrar satisfação”. Chegando ao consultório me deparo com uma situação constrangedora onde uma paciente recusava-se fornecer seu cartão do plano de saúde para ser feita a cobrança junto à seguradora, pois alegava que era retorno de consulta, onde ela apenas teria vindo para mostrar os exames que eu pedira há dois meses. Para contornar a situação, acabei orientando que não fosse feita a cobrança e que a atenderia assim mesmo. Afinal, poderia dar a impressão que eu estaria sendo mercenário ou que minha atitude não era digna de um médico com mais de 20 anos de formado. Ao deitar para dormir à noite, algo me inquietava e afugentava o sono. Eu pagara R$ 44,00 ao cabeleireiro e, no mesmo dia, tivera recusado pela paciente uma cobrança de R$ 34,00 referentes a uma consulta médica para avaliar alguns exames, que me orientariam na conduta frente a um diagnóstico de câncer e sua possibilidade de cura.
No mês seguinte, voltei ao salão para cortar o cabelo com um pouco menos de entusiasmo. Considerando o investimento em formação técnica e profissional, proporcionalmente, se eu recebo R$ 34,00 por uma consulta, deveria pagar não mais do que R$ 5,00 para cortar o cabelo. Conversando com o Lúcio, ele me dizia que fizera um curso de um ano em escola de cabeleireiros, que vai anualmente a congressos para conhecer novas técnicas, novos produtos e se atualizar nos cortes da moda. Disse que tem que trabalhar até as 20 horas e também aos sábados. Realmente fiquei orgulhoso em saber que meu profissional é um sujeito atualizado. Novamente a inquietude me tomou de assalto e não pude deixar de me comparar ao Lúcio. Certamente ele não tem curso superior. Nem tampouco pós-graduação. No entanto, isto não o faz uma pessoa menor. Maneja muito bem a tesoura e a máquina e dá o que o cliente quer: satisfação. Valoriza seu trabalho e investe na profissão. Voltei a pensar em mim. Ele está certo. O que motiva então esta comparação entre um médico e um cabeleireiro? Vejamos: ambos temos clientes. Os dele são mais fiéis do que os meus, pois os meus vieram até mim por intermédio do livrinho do convênio. Os dele são 100% particulares. Nós dois cuidamos da saúde das pessoas, claro que ele cuida dos cabelos e eu do resto. Vestimo-nos de branco impecavelmente. Manejamos a tesoura com habilidade. Está certo que as estruturas que eu corto, normalmente, sangram e doem, mas temos que ter certa habilidade para tanto. Em alguns momentos usamos luvas e máscaras, para nos proteger e até proteger o cliente. Trabalhamos bastante. Às vezes temos que atender em 15 minutos, mas normalmente damos conta do recado, neste período. Precisamos de infra-estrutura como pias, cadeiras, telefone, secretária, agenda, café, revistas, sala de espera, etc. Pagamos impostos sobre o serviço realizado. E quantos...E nossas diferenças? Bem, fiz a faculdade em seis anos, após muito estudo para enfrentar um dificílimo vestibular. Diploma em mãos foi pra gaveta, pois nova prova era necessária para fazer uma especialidade, desta vez com funil ainda mais apertado. Mais três anos se foram. Aos meus 27 anos de idade, eu havia passado 1/3 deles na Santa Casa de São Paulo. Daí comecei a trabalhar como plantonista, diarista, funcionário e até professor, para finalmente montar meu próprio consultório. Clientes particulares não existem para médicos pobres mortais da minha geração. Devem estar sendo cuidados pelo IBAMA, para ver se reproduzem em cativeiro. O jeito é fazer alguns convênios, pois hoje ninguém que tenha algum recurso financeiro quer ser atendido pelo SUS. E, a julgar pelas moças bonitas e pelos homens de meia idade esbanjando saúde que aparecem nas propagandas, o plano de saúde deve ser uma maravilha. Descobriram a fonte da juventude! Na outra ponta estamos nós, médicos de meia idade, recebendo valores que variam de R$ 18,00 a R$ 42,00 por consulta para decidir sobre a sua saúde, caro leitor. E não para por aí: se formos falar em cirurgias então, a coisa fica pior. Você pode não saber, mas se o seu plano de saúde te dá direito a quarto coletivo (enfermaria) o médico que faz a sua cirurgia recebe metade do valor combinado. Você deve estar se perguntando por quê? E nós também. Alguns exemplos: uma cirurgia comum como a amigdalectomia paga entre R$ 60 e R$ 85,00 se for plano enfermaria e, pasme, o dobro disto, se for plano apartamento. Isto você não sabia quando fez o plano, não é? E por aí vai: apendicectomias, partos, hérnias, histerectomias, tireoidectomias pagam em torno de R$ 300 a R$ 450,00 no melhor plano. E você achava que seu médico ganhava bem, né?
E os Pediatras, Clínicos, Reumatologistas, Pneumologistas, Cardiologistas que não fazem cirurgias? Ganham o quê? Consultas e apenas consultas...
Detalhe importante: cada vez que eu vou ao Lucio, eu pago. Se o paciente voltar em menos de 30 dias, o convênio não paga. Se vier uma ou dez vezes em um mês, o médico recebe apenas uma consulta. E aquela paciente não quis me deixar cobrar uma nova consulta após dois meses, para ver seus exames. Duas consultas por R$ 34,00 sai em média R$ 17,00 cada uma, fora os impostos.
No salão do Lucio também tem manicure e pedicure. Mão e pé saem pela bagatela de R$ 30,00, mas eu não faço lá. As mulheres gastam bem mais em seus cabelos com tinturas, escovas, banhos de óleo, chapinhas, etc e nada disso sai por menos do que..... Uma consulta médica. Não que não devam fazer. Acho que devem se cuidar, se enfeitarem e serem vaidosas, com moderação. Apenas quero alertar para o conflito de valores. Nem vou comentar sobre preço de depilação sob pena de entrar em profunda depressão. Outros serviços, como “quick massage”, tem se popularizado nos shoppings. Meia hora por R$ 30,00. Sem impostos, recibos, notas fiscais, títulos de especialista, vigilância sanitária, conselho regional, associações de classe, sindicatos e convênios. E se voltar no dia seguinte, paga de novo. Enfim, existe o problema e muitos médicos têm vergonha de falar sobre isto. Alguns querem manter a pose de ricos e bem sucedidos, quando, na verdade, estão mesmo é falidos. Eu deixei de atender convênios e parei de ter insônia por este motivo. Agora o motivo é outro: como vou fazer para pagar minhas contas, se todos os pacientes querem passar com o “médico do convênio”?

Dr. Anônimo
Médico de uma Santa Casa de Saúde

8 comentários:

  1. É... Um artigo contudente! E tem médicos que, de plantão nessa droga de SUS, ainda apanham. Lamentável e falta de respeito ao profissiomal, que paga o pato pela desorganização do Governo. Alé da miséria que recebem.

    Gisele - Rio

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  2. Caro Doutor!

    Entendo a sua angústia! Uma informação jornalística: Se o Senhor quiser ganhar melhor, venha montar o seu consultório aqui em Santiago, centro-oeste do Rio Grande do Sul, a 500 Km de Porto Alegre. Faltam médicos aqui! Nenhum profissional quer trabalhar no interior...Temos 50 mil habitantes e mais 120 mil em dez cidades do entorno que se dirigem a nossa cidade para buscar atendimento especializado. Há um ótimo hospital, muito bem equipado e três universidades. Ah... E muitos fazendeiros ricos. Falta dermatologista, traumatologista, angiologista, psiquiatra, oncologista e claro, o clínico geral... Clima maravilhoso, qualidade de vida excelente! Todos os médicos daqui têm fazenda e muito gado!!!!

    Nivia

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  3. Ôi... Nivia! Sou enfermeira-padrão e sua cidade me parece tentadora. Será que tem campo para mim aí em Santiago?
    Se for essa maravilha toda, vou correndo amanhã mesmo.

    Carol - Santo André -SP.

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  4. Dificil, muitas vezes, a vida de um médico. Eu compreendo isso. Lutam para salvar vidas encontrando tantas e tantas dificuldades. Meu respeito e minha solidariedade a esse médico que escreveu esse comovente artigo.

    Laura Bismarck - Florianópolis

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  5. Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
    Em nosso espírito sofrer pedras e setas
    Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
    Ou insurgir-nos contra um mar de provocações
    E em luta pôr-lhes fim? Morrer.. dormir: não mais.
    Dizer que rematamos com um sono a angústia
    (...) – Willian Shakespeare - Hamlet
    E agora doutor?
    Pagar quarenta reais por um corte de cabelo!!!!!!!!!!!
    Será que não dá para gastar menos? Eu pago 15.
    Gostei do texto. Muito interessante.

    J. Morgado

    Mongaguá - SP

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  6. Vou ser bem franco e me perdõe o médico que escreveu essa carta. A maioria dos médicos só pensa no vil metal. Muitos estudam em Universidade Federal, sustentada com o dinheiro do povo. Ou seja, estudam de graça, quando se formam, se esquecem daquele que lhe ajudou a se formar: o povo. Qualquer consulta não fica menos que 100 reais. Tem médicos que cobram bem mais que isso. Ora, será que esses que se formaram em Universidades públicas não poderiam, pelo menos um vez por semana atender gratuitamente os mais necessitados? Mais ainda, caro doutor da Santa Casa: o senhor conhece médico pobre? Eu, não!

    Walmir Caetano - Salvador - BA

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  7. Sou filha de dentista e pra termos uma "casa própria" precisamos nos cotizar: meu pai já tinha usn 50 anos. Sempre *precisou* de convênio, além do consultório particular (impostos, afff) . Na época da Universidade, trabalhava à noite, nem que fosse pra pagar o Restaurante Universitário e a condução.Fora livros, apoltilas...
    Depois de formado, mais dinheiro gasto em cursos, congressos...
    Minhas colegas ganhavam pôneis de presente de aniversário, tinham sítio pra irem nas férias, e eram filhas de comerciantes.
    Desde aquela época, muita coisa mudou : médicos e dentistas de hj não têm consultório, vivem de merreca de SUS e convênios, e mal podem pagar um curso de atualização.
    Meu marido se formou em engenharia civil e trabalhou por pouco tempo nessa área, que ele sempre adorou . Concurso público foi a solução pra termos um apartamento e podermos pensar em filhos.
    Nossas filhas são funcionárias públicas e gastariam metade do que ganham em salões de beleza e academia, se não fizessem sozinhas em casa, o que esses profissionais cobram.
    Meu cabeleireiro tem academia em casa e viaja em cruzerios nas férias.
    Alguma coisa tá errada aí, concorda?

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  8. Pelo que pude ler, a medicina no Brasil então é mesmo um sacerdócio... A menos que o medico escolha uma area de estetica ou cirurgia plastica, a maioria vai ter que fazer das "tripas coração" pra se virar nos 30.
    Médico de pobre ganha pouco, pq pobre não pode pagar convênio, nem consulta particular.
    A saude brasileira ta pedindo socorro..
    Isildinha-SP

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