
INFANTICÍDIO
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Também não fui esculpida aos poucos, pelo dia-a-dia daqueles que jamais souberam porque o sol desponta todas as manhãs e em seguida dá lugar à noite, uma sucessão de idas e vindas sem qualquer sentido ou vantagem para os que são meros espectadores dessa e de tantas outras alquimias insondáveis da existência.
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Gastei meu cacife logo de cara, uma espécie de tesão incontrolável pela felicidade, o gozo e o prazer que até hoje me persegue e nunca consigo realizar. É o fantasma da boneca me espreitando pela vida afora em todos os desvãos, em qualquer esquina, até mesmo nas ondas do mar, nas tardes que deveriam ser de prazer e só terminam em mais ansiedade e vazio.
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Sim, sei que até nisso sou modesta, pequena e acanhada. Deveria ter a mesma comichão sonhando com carros, transatlânticos, hotéis principescos e acabo desejando algumas panelas vistosas e a tal máquina de fazer pão. Devo reconhecer que me contento com pouco. Tudo, qualquer geringonça me fascina. Menos bonecas. A essas tenho o horror mais sanguinário deste mundo. Bonecas e filhos, também é bom confessar, embora, quanto a esses, não goste de falar muito. Até porque já foram três que não se aguentaram em meu corpo por mais de algumas semanas. Foram eles que não gostaram de mim, é bom deixar claro.
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Nenhum velhinho escalou chaminés ou trepou pelos muros. Foi mesmo minha mãe, indiferente como sempre que, determinado dia, chegou abraçando a tal cobiçada caixa e me entregou dizendo ter encontrado o presente no lixo. Assim, da mesma forma como estou contando agora. No lixo. No primeiro momento isso não teve a mínima importância. Afinal, fosse como fosse, minha vez tinha chegado.
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Só comecei a chorar e soluçar pela vida inteira depois que abri o pacote. Estava vazio. Vazio como ficou durante toda a minha infância, sobre o pequeno e modesto guarda roupas, o fantasma da boneca debochando e rindo das minhas lágrimas. Da Papinha, era esse o nome do brinquedo, só o espectro, o vazio e a ausência.
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Veja bem, doutor. Hoje não dou a mínima importância para isso, só estou contando porque o senhor disse que lembranças da infância talvez possam melhorar essa comichão que me sobe pelas entranhas, inunda meu cérebro e me faz desejar panelas, fornos de micro-ondas e máquinas de fazer pão. E gastar tudo o que tenho e o que não tenho para alcançar um tesouro que nem eu mesma sei o que é.
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Para ser sincera e concluir essa conversa, penso que a única vingança que valeria a pena seria destroçar esse tal de Papai Noel, arrancar barba, cabelo, boné, rasgar suas roupas escandalosas e atirar tudo no monturo de lixo onde ele achou a caixa e a boneca fantasma há tantos anos.
Minha mãe? Ah! Há muito tempo não sei nada dela, nem onde anda, se ainda vive ou já morreu. Para falar a verdade, nem lembro mais de sua cara.
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Virgínia Pezzolo é jornalista, advogada e escritora. Participou de diversas antologias de contos e ensaios. Autora do livro Procissão do Silêncio, publicado em 2006.
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Minha mãe? Ah! Há muito tempo não sei nada dela, nem onde anda, se ainda vive ou já morreu. Para falar a verdade, nem lembro mais de sua cara.
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Virgínia Pezzolo é jornalista, advogada e escritora. Participou de diversas antologias de contos e ensaios. Autora do livro Procissão do Silêncio, publicado em 2006.
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