domingo, 24 de janeiro de 2010

DIÁLOGO NACIONAL

Início dos anos 70, uma terça-feira, fui chamado pelo jornalista Fausto Polesi, diretor do Diário do Grande ABC, em sua acanhada sala da "casinha", onde funcionava a redação. Sempre com cara de poucos amigos (assim ainda é o excelente jornalista e sempre companheiro Fausto Polesi, mas coração de gigante), convocou também o chefe de redação - José Louzeiro, hoje presidente da Associação dos Escritores do Rio de Janeiro - fechou a porta e foi dizendo: "o Diário recebeu convite da televisão Record para enviar dois jornalistas para participarem do programa "Diálogo Nacional".
Fiquei surpreso e sem entender bem o que tinha eu a ver com a coisa, uma vez que era apenas um neófito repórter esportivo. "Sim, Dr. Fausto, onde entro na parada, não estou entendendo?", indaguei. Sem levantar os olhos dos convites que estavam sobre sua mesa, o diretor, respondeu: " vamos eu e você", sentenciou. Meio atônito e sem discutir a ordem perguntei que dia era o programa. "A gravação é hoje às 19h e vai ao ar esta noite, às 23h30 ", emendou o chefão e completou: "chamei o José Louzeiro, chefe da redação, para não passar por cima de sua autoridade, certo?" Nada mais foi dito nem perguntado. Fiquei satisfeito, porém apreensivo, com tantos "cobras" no Diário especializados em assuntos polêmicos como Édíson Motta, Aleksandar Jovanovic, Ademir Medici, Hermano Pini Filho e Otto Diringer, além do próprio Zé Louzeiro e outros, o chefão foi logo me escolher. Enfim...
O programa Diálogo Nacional da TV Record marcou época nos anos 70. Era apresentado por Blota Júnior e Murilo Antunes Alves, além da participação de jornalistas da emissora. Blota Júnior já é falecido; Murilo Antunes Alves não sei onde anda, porém lá pelos anos 80 foi chefe do Cerimonial do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista.
A tônica do programa, em rede nacional era a política, os políticos e a situação da época no Brasil. O regime militar estava em plena vigência. Os entrevistados eram Murilo Macedo, ministro do Trabalho, Tito Costa, prefeito de São Bernardo, e Luiz Inácio da Silva, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC que não havia, ainda, colocado o apêndice "Lula" agregado oficialmente ao nome.
Botei terno e gravata, apetrechos que sempre abominei, peguei minha Brasília bege e lá fui para a TV Record, então instalada na Avenida Miruna, próximo ao aeroporto de Congonhas.
O misticismo que eu carregava sobre a suntuosidade de um estúdio de televisão foi água abaixo assim que entrei no prédio. Não havia estacionamento para "sapos ", como era meu caso. Encontrei o Fausto e o Tito Costa na porta daquele enorme galpão, que mais parecia uma fábrica em ruínas ou depósito de bebidas abandonado. Passamos por uma meia dúzia de seguranças, que revistaram até as cuecas, e chegamos a um corredor que terminava em pequeno palco.
Nesse espaço, com um telefone na mão esquerda, estava o jornalista Ferreira Neto (falecido aos 64 anos, em 4 de agosto de 2002), gravando seu programa com um tipo de personagem criado por ele, de nome Léo, com qual, via telefone, e com algum cuidado que o tempo exigia, satirizava situações de políticos da época do regime militar. Ferreira Neto, um troglodita de mais de 120 quilos passou por nós no corredor apertado empurrando tudo que encontrava pela frente e, como sua arrogância era proporcional ao seu tamanho e peso, sequer cumprimentou a gente. Estava para começar a gravação do Diálogo Nacional. Na bancada havia também um jornalista da Record: Celso Vernize, filho de Narciso Vernize (também já falecido), o "Homem do Tempo", da Jovem Pan. O ministro Murilo Macedo era o convidado especial pelo óbvio, já que nessa época pululavam veladas greves de trabalhadores em vários segmentos. Tito Costa era o prefeito de São Bernardo, cidade brasileira com o maior número de indústrias de porte, e Lula, presidente dos Metalúrgicos, já então carismático e que havia levado cerca de 70 mil trabalhadores ao estádio de Vila Euclides, o que deixava políticos e milicos, argolados ao governo militar, com a pulga atrás da orelha.
Antes de começar a agravação, porém, uma mulher - não perguntamos o nome e pouco interessava - chegou a nós (eu e o Fausto) e mostrando um papel datilografado foi determinando: "Olha, as perguntas ao ministro, ao prefeito e ao presidente do sindicato estão neste papel. Não façam nada improvisado". Deu uma cópia para cada um de nós e foi saindo. "Ei, moça, espera um pouco - chamei - pelo que entendemos, nós temos que ler este papel durante a entrevista? "Sim - respondeu a mulher - os censores estão aqui de plantão e a gente não pode facilitar". Olhei para o Fausto, encarei a mulher e devolvi o papel: "Olha, minha senhora, se tivessem avisado que a gente viria aqui para ser marionete pode ter certeza que não iria colocar esta armadura (terno e gravata) e muito menos me deslocar do ABC. Eu vou embora". Rapidinho, já que o pessoal da produção chamava a gente para ocupar a mesa, onde estavam instalados o ministro, o prefeito, o sindicalista, um repórter e os dois âncoras (Blota e Murilo), a mulher das "ordens" me segurou pelo braço e, de novo, rugiu: "Tudo bem, mas veja lá o que vocês irão dizer ou perguntar, principalmente ao ministro. Se for o caso a gente corta a gravação". Pegou o papel de nossas mãos, com as perguntas, e sumiu naquele corredor entupido de tranqueiras.
Com indisfarçável sorriso no canto dos lábios olhei para o Faustão e fomos para a gravação. Correu tudo bem, não fosse pequeno deslize de minha parte. Coloquei a carteira de cigarros Free sobre a bancada ao lado do meu microfone. Em determinado instante ouvimos um berreiro: "corta, corta; pô, seu Lavrado, olha o cigarro", gritava uma voz que vinha do balcão superior onde estavam as câmeras. "Qual é o problema? Não estou fumando e nem seria louco de fumar aqui", berrei também, sabendo que a gravação já estava paralisada. "Não podemos gravar com o seu maço de cigarros aparecendo às câmeras, é propaganda gratuita", justificou o mesmo cara que urrava lá do alto. A entrevista de hora e meia foi até o final, com pequenos cortes em virtude de apimentadas perguntas ao ministro do Trabalho e ao Lula, mas sem maiores consequências.
Tito Costa, na época prefeito de São Bernardo, até por razões naturais foi cuidadosamente poupado.
Nada de muito comprometedor foi lhe dito, nem perguntado. Atualmente Tito Costa está com 87 anos e se recupera de um enfarte.
Voltamos para casa a tempo de ver a gravação, exibida por volta da meia noite. No dia seguinte lá estava eu na redação do Diário, bem cedo como de costume, para minhas matérias esportivas e o Fausto Polesi cuidando do editorial do jornal para aquele dia. O assunto, quase que obviamente, foi o "Diálogo Nacional".
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Oswaldo Lavrado é jornalista/radialista radicado no Grande ABC
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