sexta-feira, 27 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Exclusivo
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O velho Abílio,
Um "médico" na redação
Parte X
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Milton Saldanha
Memórias
Capítulo II

1969. O Diário do Grande ABC mal tinha deixado de ser o semanário News Selller. Ainda estampava na capa, ao lado do logo, esse nome, em letras reduzidas. A extensão do título, com aquilo que parecia um adjetivo, no meio, nos espantava. Por que não apenas Diário do ABC? Eu estava desempregado, ou melhor, mal empregado. Tinha sido demitido do Diário Popular, por ser irmão do Rubem, e fiquei uma curta temporada no Shopping News. Meu chefe era o Hermínio Sachetta, que só muitos anos depois fui saber tratar-se de figura histórica e muito importante do comunismo brasileiro. Quem me dera poder voltar no tempo e colher um belo depoimento do velho Sachetta, que cultivava aquele estilo de chefe gritão, sempre afobado com os fechamentos.
Rubem consultou Fausto sobre minha contratação como copydesk. A função era uma novidade no Diário. Não houve objeções, eu poderia ir. Nos últimos cinco meses tinha sobrevivido como correspondente comercial no escritório paulista de uma empresa do Rio. Emprego achado em classificados de jornal. Odiava aquele trabalho, e se não tivesse estômago para abastecer teria largado na primeira semana, ou menos. Então, o chamado para o Diário foi como um convite para trocar o inferno pelo céu. Tremenda felicidade! A grana era legal. Os repórteres ganhavam 600 cruzeiros por mês, contra 490 cruzeiros do piso da categoria em São Paulo, que ainda não estava defasado e era uma conquista recente. Sendo copy, eu ganhava 700. O Rubem ganhava mil. Só havia um detalhe: ninguém tinha registro em carteira. Ganhava-se mais do que na Capital porque não havia os descontos. A diferença era uma espécie de cala boca, ninguém chiava. Fiscalização da DRT não passava nem na porta. E nossa carga horária era pesada, ninguém tinha hora para sair, sem ganhar hora extra, além de se fazer plantão de final de semana. Rubem e eu trabalhávamos todos os sábados, e os repórteres faziam revezamento de plantão aos domingos. O jornal não circulava nas segundas. A redação era numa casinha de esquina, onde hoje existe um edifício. Não havia o atual prédio, só as oficinas, num barracão no fundo do terreno, que abrigava também balcão de anúncios, salas dos demais diretores e administração. Estrategicamente, já tinham deixado espaço para a futura sede. Na casinha, Fausto Polesi tinha sua sala exclusiva. Sem secretária. Só Edson Dotto, diretor-presidente, tinha secretária. De vez em quando, aos sábados, Fausto aparecia lá em roupa esporte, com seus dois moleques pela mão, para saber se estava tudo bem. Os moleques eram Alexandre e Cassiano. Em outra sala, pequena, com as mesas encostadas, ficávamos Rubem, Lázaro Campos, que dobrava nas funções de chefe de reportagem e diagramador, Eduardo Camargo, que fazia sozinho a página de política, e eu. O único que usava terno e gravata era Camargo. Nosotros, em certos dias, sequer fazíamos a barba. Na sala maior ficavam os repórteres: Cássio Loredano (ele mesmo, o extraordinário ilustrador de sucesso internacional), Dirceu Pio, Hildebrando Pafundi, José Augusto, Ana e mais uma ou duas moças, cujos nomes, desculpem, não recordo. Também o Hermano Pini Filho, que só chegava no final da tarde, tinha emprego na Pan, dos chocolates. Assinava o Primeiro Plano como Júlio Pinheiro, e se reportava diretamente ao Fausto. Escrevia também editoriais, sempre fumando seu cachimbo. Maravilhoso companheiro. Alguns meses depois entraram Paulo Andreolli, para geral; Renato Campos, para polícia; e o primeiro colunista social, Serafim Vicente. Numa salinha mais ao fundo ficavam Salvador e Romão, do esporte, ao lado do Seu Abílio, encarregado do arquivo, do livro de ponto, e de encher o saco dos dois boys, pois fora informalmente nomeado como “chefe” dos moleques. Seu Abílio passava boa parte do dia caminhando com o livro de ponto, de mesa em mesa, cobrando as assinaturas. O cara tava mergulhado no texto, concentrado, e lá vinha seu Abílio... Isso municiava o arsenal de piadas da redação. A gente achava o velho um tremendo chato, sem perceber que ele era o único organizado ali naquela zona e nos fazia inestimável favor, garantindo a documentação das nossas longas jornadas. Seu passado era famoso, interrompeu o curso de Medicina no meio, por falta de recursos, exerceu a profissão ilegalmente, foi descoberto e cassado, ou preso, não sei direito. Quando alguém ficava doente consultava com ele. Sempre dava bom resultado. A benção, Seu Abílio! Na fotografia, com laboratório também na casinha, trabalhavam Pedro Martinelli, o famoso Pedrão, mais tarde fotógrafo da Playboy, usando máquina própria semi-profissional, e Mário Otsubo. No laboratório, Roberto, que sonhava em virar repórter-fotográfico. Salvo algum esquecimento, involuntário, me perdoem, isso era tudo na redação. E só com isso a gente tirava um jornal diário, de terça a domingo, que logo passou a ter dois cadernos, sendo gordinho nas quintas e gordão aos domingos, para nosso orgulho.
O único carro da redação era uma malhada Rural Willis, nas mãos do motorista Pelé. Ele juntava os repórteres e ia largando nos seus locais de cobertura, um aqui, outro ali. Na volta, geralmente, cada um se virava. Vinham à pé ou de ônibus. Pagando do próprio bolso, sequer havia uma caixinha de despesas. Táxis, nem pensar. Quem tinha sorte, telefonava e Pelé ia buscar. Como não havia telex, nem teletipos, Pelé fazia todos os dias duas viagens até a Agência Estado, na Rua Major Quedinho, Centro paulistano, e voltava com vários rolos de cópia carbono dos telegramas das agências. A gente ia selecionando aquelas tripas, cortando com régua, e “copidescava” ali mesmo, com a caneta. Nossas mãos ficavam pretas do carbono. Não raro, um de nós esbravejava todos os palavrões do mundo quando não encontrava naquelas maçarocas alguma importante notícia do dia, se bobear a própria manchete do jornal, ou de uma página. Era um horror.
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Não deixem de ler no capítulo de amanhã, a dura vida dos repórteres no final dos anos 60, quando ouvido tinha valia. Era preciso prestar atenção. Quando soava alguma sirene, se mais forte indicando ser dos bombeiros, repórteres eram acionados e saiam correndo em busca da notícia. Manter um plantonista no QG dos bombeiros? Impossível, era um luxo naqueles tempos, todos faziam falta na redação. ( Edward de Souza)
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Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho, torcedor do Inter, começou no jornalismo aos 17 anos, em Santa Maria (RS). Trabalhou na grande imprensa de Porto Alegre e de São Paulo. Foi da Folha da Manhã (RS), Diário do Grande ABC, Agência Estado, Estadão e JT, Rede Globo, Rádio Jovem Pan, Última Hora (com Samuel Wainer), entre vários outros veículos. Foi também assessor de imprensa da Ford, do IPT e do Conselho Regional de Economia. Tem um livro publicado, "As 3 Vidas de Jaime Arôxa"; participou de uma antologia de escritores gaúchos; um livro pronto e ainda inédito, "Periferia da História", onde conta de memória 45 anos da recente história do Brasil sob um ângulo totalmente inédito; trabalha num livro sobre Reforma Agrária. Pouco antes de se aposentar fundou o jornal Dance - www.jornaldance.com.br - que já tem um filhote regional em Campinas, e que neste 2009 completa 15 anos.