
A missionária demonstrava estar atordoada, sem saber qual providência adotar, ao me ver naquele estado deplorável. A cidade mais próxima era Normandia e, até lá, o percurso teria de ser feito a pé. E eu não tinha condições de caminhar sozinho. A não ser amparado e, mesmo assim, com muita dificuldade. Vi a missionária conversando com alguns índios, que foram até o interior da mata e voltaram, minutos depois, com uns galhos de árvores e pedaços de cipós. Eu apenas observava a movimentação em torno, sem quase nada compreender. Só entendi quando os índios, habilidosos, em pouco tempo improvisaram uma maca. Conclui: eles haviam decidido me levar para Normandia deitado naquela maca. Conclusão certeira.
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Sei que numa tarde, ainda sonolento, recebi a visita de dom Aldo Mongiano. Aproveitei a sua presença para que interviesse e me retirasse daquele lugar. Queria voltar para São Paulo, ver minha mulher e, mais tranquilo, procurar assistência médica. O religioso ficou de me atender. Mesmo assim, só fui liberado num sábado, um sábado de Aleluia. Nesse mesmo dia, marquei meu retorno a São Paulo. O vôo sairia à meia-noite, faria escala em Manaus, Brasília e só depois pousaria na capital paulista. Telefonei para minha mulher e pedi que me esperasse na manhã seguinte no aeroporto de Guarulhos.
Para a missionária e o bispo prometi que escreveria o livro, sem mesmo entrevistar os índios, apenas baseado nos documentos que eles haviam me cedido. E cumpri minha promessa. Seis meses depois, entregava o manuscrito de Os Filhos da Serra do Sol. Nesse mesmo período, fiz as consultas e os exames necessários. Apesar de constatada a hemorróida, optei por não operar. O que ocorreria dois anos depois, quando não suportava mais o incômodo.
Há mais de três décadas, acredito que em uma crônica publicada em A Crítica, de Manaus, intitulada Lamento, expressei o amor que um homem sente por uma mulher. Nesse caso, meu amor pela Ilca. A crônica merece ser transcrita pela transparência, pela ausência total de pudor ao me revelar um homem apaixonado. Lembro-me apenas que estava morando sozinho em Manaus à espera da Ilca. Na data prevista, por razões explicadas depois, ela não compareceu. E fui então para a Escadaria dos Remédios, local que reunia os boêmios da capital amazonense, às margens do rio Negro e escrevi: .




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Não há movimento. Tudo está parado. E são de tristeza as poucas ondas do rio. O boto, antes tão exibido, não pula mais como um golfinho ao aproximar das embarcações. Os pássaros, em revoada, fugiram ninguém sabe para onde e não mais se ouve seus cantares ao amanhecer. Vitória-régia murchou, como que enfeitiçada pelo sopro de uma bruxa má.
Deixaram de pescar os caboclos; parece até que tucunaré e tambaqui fugiram no manancial escuro e profundo, doce e misterioso da bacia do rio Negro. As casas, flutuantes, perderam seu colorido, sua beleza primitiva, sua dócil rusticidade. Os bares flutuantes cerraram suas portas. Agora não dá mais para tomar um aperitivo nem comprar peixe e coco verde. O barco emperrou, não quer mais navegar. Ainda mais distante, quase invisível, ficou o horizonte da felicidade.
Deixaram de pescar os caboclos; parece até que tucunaré e tambaqui fugiram no manancial escuro e profundo, doce e misterioso da bacia do rio Negro. As casas, flutuantes, perderam seu colorido, sua beleza primitiva, sua dócil rusticidade. Os bares flutuantes cerraram suas portas. Agora não dá mais para tomar um aperitivo nem comprar peixe e coco verde. O barco emperrou, não quer mais navegar. Ainda mais distante, quase invisível, ficou o horizonte da felicidade.

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Mas você não veio. Não quis pisar no chão de Manaus e respirar o ar mais puro do mundo. Não quis conhecer o Teatro Amazonas, principal símbolo da fase áurea da borracha. Nem ir às praias fluviais. Visitar seus bares e restaurantes, tomar cachaça de Belém e comer uma peixada típica amazonense. Não aceitou meu convite para navegar pelos rios amazônicos. E conhecer o território livre da Escadaria dos Remédios, seus homens e suas mulheres. E todos a esperavam. De tanto eu cantar sua beleza, imaginavam que você viria por sobre as ondas do rio Negro, flutuando como a mais maravilhosa das ninfas. Escreve e diz apenas aguardar meu regresso, certa da minha partida imprevisível.
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Sua ausência está desmoronando o império dos românticos e dos loucos da Escadaria dos Remédios. Está alquebrando os homens de braços de aço e peito de ferro. Homens acostumados a enfrentar as mais violentas tempestades. A subviver onde a subsistência quase não existe. Homens valentes e destemidos como João Balduíno, de Jorge Amado. Homens que madrugam com um copo de cerveja na mão e uma prostituta nos braços. Mas que são dóceis quando amam. Frágeis, até. Muitos chegam a ser até piegas. Como eu. Mas o amor é uma lista telefônica de perdões. O Amazonas ainda espera por você, Ilca...
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Na próxima quarta-feira, o vigésimo primeiro capítulo de "Memória Terminal", do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50.
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Na próxima quarta-feira, o vigésimo primeiro capítulo de "Memória Terminal", do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50.
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Edward de Souza
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*Os comentários para este capítulo, escrito pelo saudoso jornalista José Marqueiz, foram suspensos. Agradecemos sua compreensão.
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