segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010


ROSAS DE FOGO

Fogueteiro ergue o rojão, acende o pavio, olha o céu estrelado e sorri com a explosão do artefato. Depois, ajeita a toca preta na cabeça e passa os dedos sobre a tatuagem estampada no braço: uma tocha, as labaredas camuflando a feia cicatriz, lembrança de uma briga de rua quando ainda era menor e foi atingido por uma faca. É um homem forte, físico avantajado, queixo quadrado, nariz achatado em muitas lutas, vingativo e respeitado no pedaço. Demonstra contentamento e vontade de agir:
- Carnaval taí, A folia pinta logo mais, é preciso participar, gingar e sambar, galera. Queria muitos morteiros, fogos de artifício, adoro o batuque dos fogos explodindo no céu. Fui aprendiz de fogueteiro, queria fabricar, produzir cascatas de fogo, aquele jogo de luz é do cacete. Fui demitido, levei um punhado de foguetes para o campo de futebol, sabe como é, cada gol uma bomba. Não fui preso, o dono ficou com medo de me denunciar, a fábrica era clandestina, ele podia se enrolar.
- É isso – diz Vaga-lume, um cara grandalhão e desengonçado, que tem o hábito de acender e apagar a lanterna que carrega no bolso. - Concordo, é hora de festejar. Conheço uma parada legal, rola muito barato, pauleira, meu. E mina de sobra, garotinha da sociedade, madame, cara, tudo a fim de curtição. Zoeira, mano, é chegar lá e levar pro abraço. A mulherada é ligada nas lideranças, quer ficar junto do poder. Entende?
Cabeça, apelido que indica ser possuidor de uma cabeça desproporcional ao corpo, bate nos ombros dos companheiros, alerta:
- Tem problemão, mano.
- Qual?
- Grana. Sem lubrificante não entra, segurança barra. Tem de pagar o consumo, meu. Grana pra cerveja, pro pó, pra amaciar as minas. Ficar de fora, cheirar fumaça e chupar dedo não dá. Certo?
Fogueteiro funga, nariz entupido de droga:
- Alguma ideia pra arrecadar fundos?
Cabeção estala os dedos, sugere:
- Solução é o que não me falta. Sempre saco alguma ideia, tenho um plano. É topar a parada, sem erro. A gente assalta um ônibus. É tempo de viagem, muita gente chega para a farra, os desfiles, basta expropriar os abonados. Negócio limpo, seguro, não dá truta.
- Positivo, tô nessa – diz Fogueteiro.
Vaga-lume concorda:
- Ação, mano.
Fogueteiro indaga:
- E as armas? Não largo minha pistola nem morto. E vocês?
- A 45 tá azeitada.
- É só disparar, a minha tá carregada, munição de primeira, trazida do quartel da PM, um cabo me fornece.
- Então vamos ensaiar a brincadeira. Artista tem de ensaiar pra não errar. O espetáculo vai ser lindo. Ali adiante tem um posto de gasolina. Moleza, mano.
O bando não tem dificuldade em render os frentistas, que são trancados no banheiro. Arrecadada a féria, Fogueteiro enche um galão com gasolina.
- Pra quê isso, cara?
- Sei não, pode ter utilidade.
Noite adentro os bandidos circulam com um carro puxado, escolhem a presa, caçadores impiedosos na espreita. Súbito, avistam um ônibus de turistas.
- Na mosca, é este, cara, vamos limpar os bacanas. Bora, bora, bora.
Aceleram o motor do automóvel, ultrapassam e fecham o veículo com uma brusca brecada. Obrigam o motorista a abrir a porta e invadem. Gritam e gesticulam, apavoram os passageiros com a exibição das armas:
- Quietos, em seus lugares. Depressa, dinheiro, logo. Que tá esperando, veado de merda?
Um cidadão gordo, idoso, tenta argumentar:
- Calma, calma. Somos pais e mães de família, temos filhos.
- Filhos? Bobagem, tá cheio de filhos no mundo. Crescem de qualquer jeito. Pai não faz falta, meu. Um a mais ou a menos dá no mesmo. Tem crianca azarada em toda parte. Chega de papo furado, cara, tô perdendo a paciência.
Fogueteiro abre o galão, despeja a gasolina, o combustível escorre, molha os bancos, encharca o veículo. Ele gesticula, segura firme a pistola, grita:
- Depressa, dinheiro e valores, nada de bagulho. Se bobear risco o fósforo, vai ser divertido, um inferno.
Vaga-lume acende a lanterna, aponta o facho para uma garota miúda, magra, olhos que espelham espanto e medo, rosto angelical, encolhida no banco. Assobia:
- Olha que pitéu, Fogueteiro, tá no ponto, miau. A mina tá pra mim, tô com tesão.
- Que é isso, mano? Endoidou? É magrela, mulher tem de ter bunda, peitaço. Quem gosta de osso é cachorro e cemitério. To te estranhando. Quer roer osso? Que merda.
- Ora, só uma rapidinha.
- Negativo, mano, mulher tem de se entregar numa boa, com lábia, droga ou grana. Vamos pra cabeça. Entendido?
- Tá bem.
- Tchau, gente. Acabou, agora é dar no pé. Bora, gente, bora.
Cabeça se apressa, recolhe bolsas, carteiras, joias e relógios.
Fogueteiro gargalha:
- Simbora, mano, vou iluminar o espetáculo.
Com uma risada maligna ele enche os pulmões de ar, o rosto se arredonda. Risca um fósforo e se gratifica com a explosão e o fogaréu que se alastra. Os gritos de dor soam em seus ouvidos como sinfonia.
Cabeça faz um gesto com os ombros, pergunta, sem emoção:
- Pra que queimar, cara?
- Experiência, queria ver se os passageiros explodiam como fogos de artifício. Adoro fogos, amo aquelas flores coloridas no céu, cachoeiras de luzes. Achei que o sangue subia dos corpos como rosas vermelhas, desenhos bacanas nas alturas. Pena, queimou tudo como lenha, virou carvão. Bem, em frente, vamos curtir a balada. Quem sabe na próxima vez a coisa funciona. Banco a primeira cheirada. Espírito de carnaval, vamos embalar na folia.

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*Guido Fidelis, jornalista, escritor cosmopolita, também advogado é outro dromedário da imprensa paulista. Ex-Última Hora, Diário do Grande ABC, A Nação e A Gazeta, sua pulsante literatura deixa pouca dúvida a respeito de suas preferências: drama policial com um aroma decididamente neonaturalista. Guido Fidelis tem mais de uma dúzia de livros publicados. A última obra de Fidelis, "Dádiva", foi lançada no final do mês passado pela RG Editores, de São Paulo.
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