quarta-feira, 18 de agosto de 2010



Sem ter o que fazer, decidi gravar as memórias do bispo diocesano Dom Jorge Marcos de Oliveira, conhecido como o Bispo dos Operários. Esse religioso os adversários chamavam de o Bispo Vermelho, pela sua atuação em defesa dos operários e dos políticos contrários ao regime militar. Dom Jorge chegou a abrigar, na casa da diocese, fugitivos da polícia política do governo e as celebrações comandadas por ele na Catedral do Carmo, em Santo André, chegavam a lotar por pessoas ávidas de ouvir uma palavra de esperança no respeito aos direitos humanos e à volta ao regime democrático. Desde 1964 – ano em que eclodiu a revolução militar, que o cronista Stanislaw Ponte Preta chamava ironicamente de A Redentora – Dom Jorge começou a se destacar como um religioso contrário às determinações dos novos detentores do poder, que viam, em cada contestador do regime, um subversivo, comunista, adepto da doutrina russa e cubana.
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No dia 1 de Maio de 1968, em comemoração ao Dia do Trabalho, liderou uma passeata pelo centro de Santo André, que teve a participação de milhares e milhares de pessoas. Um extremista da direita tentou atingi-lo com um tiro de revólver, mas foi impedido por populares, que o agrediram. Essa passeata, pacífica, obteve repercussão nacional e, mesmo com a pressão dos militares, Dom Jorge prosseguiu com a sua luta na defesa de suas ideias de liberdade e respeito ao ser humano. Em suas memórias, Dom Jorge lembra de sua infância no Rio de Janeiro, do seu pioneirismo em deixar a batina e começar a usar roupas comuns e de suas visitas aos morros cariocas, numa época em que só os moradores eram bem recebidos. Sagrou-se bispo muito jovem e, em 1954, instalava a diocese em Santo André, abrangendo todo o seu território. Permaneceu nesse posto até 1975, quando se sentindo adoentado, pediu ao papa para afastá-lo, sendo substituído por Dom Claudio Hummes.

Dom Jorge morreu antes de terminar a gravação de suas memórias. O livro eu consegui terminar com base nas pesquisas de seus arquivos pessoais, que incluíam uma série de poemas, muitos de alta qualidade. O coração o matou e o seu corpo encontra-se sepultado no mausoléu da Catedral do Carmo. O livro, denominado Dom Jorge, o Bispo dos Operários, continua inédito. Para mim, ficou a lembrança de um homem delicado, atencioso e magoado com a situação de miséria em que vivia a maioria do povo brasileiro. 1989 se desenrolou com muita dificuldade e um excesso de bebida alcoólica, a ponto de nem eu mesmo me suportar. Olhava-me no espelho e via a imagem da decadência, da degradação. O rosto acinzentado, como se não tivesse vida, as bochechas inchadas, evidenciando a característica dos alcoólatras. Minha mulher nada dizia, mas eu percebia a sua tristeza, a sua frustração.

Numa manhã de sol, sem dinheiro, decidi ir a pé até a casa de meus pais. Encontrei só a minha mãe – silenciosa, os olhos doces me olhavam como a sentir estar perdendo um filho e que, de acordo com os meus próprios irmãos, ela considerava o mais bonito e o mais inteligente. Beleza e inteligência jogadas praticamente no lixo, sem que ninguém, nem o apelo materno silencioso poderia conter. Nesse dia ela me confessou que, em toda a sua vida de casado com o Caetaninho – era assim, no diminutivo que era chamava meu pai Caetano – ela não iria conseguir preparar o almoço. Mas nada mais disse. Preocupado, sai e comentei com a minha irmã Antonia, residente no mesmo bairro, da minha desconfiança do estado de saúde de minha mãe. Antonia ficou de visitá-la e verificar o que poderia ser feito.

Sem se preocupar com almoço – me contentava com petiscos, como pastéis, coxinhas de frango, pedaços de linguiça na chapa – voltei a me embriagar. Em um dos bares em que estava, já tardezinha, senti uma angústia oprimindo meu coração e comentei com um companheiro ao lado, que também bebericava: Minha mãe acaba de morrer! Ao chegar em casa, minha mulher esperava-me no portão. Havia chorado e, antes mesmo de pronunciar qualquer palavra, eu me adiantei: Já sei. Minha mãe está morta! O velório, na sala da casa, reuniu parentes e vizinhos. O corpo, atendendo a seu desejo, foi levado para Bálsamo e sepultado no cemitério local, junto aos corpos de seus pais e irmãos.

De regresso a Santo André, pensei em parar de beber em respeito à memória materna. Não consegui. Quem também buscou me ajudar, ao saber de minha lamentável situação, foi o administrador de empresas e contabilista Nelson Pinheiro da Cruz, meu conhecido desde a juventude, quando cursava técnico de contabilidade e fazia o serviço militar obrigatório no Tiro de Guerra de Santo André. Nelson, de início me pediu para escrever sobre o cinquentenário de sua empresa, o Grupo Candinho, conglomerado de empresas responsáveis pela prestação de serviços ao comércio e a pequenas indústrias. Em pouco tempo realizei esse trabalho e recebi um bom dinheiro, o suficiente para pagar os bares onde ainda tinha crédito.

Ainda na esperança de me reabilitar, Nelson me procurou em casa e me ofereceu um emprego em sua empresa, com registro na carteira profissional. Era mais uma tentativa. Aceitei e, no escritório em que me instalei, revi o contador Elpídio Dalla, proprietário de um escritório de contabilidade, onde tive o meu segundo emprego. Ao ver Dalla, lembrei um pouco, mas com nitidez, dos tempos em que cheguei a Santo André, com doze anos, vindo de Bálsamo.
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Na próxima quarta-feira, o décimo nono capítulo de "Memória Terminal", do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50. (Edward de Souza/ Nivia Andres).
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