quinta-feira, 1 de julho de 2010


AS COPAS E O

COMPORTAMENTO DAS MASSAS



De tudo que vi na minha vida, que em julho completa 65 anos, e ajudado por privilegiada memória, aponto a vitória na Copa de 1958 como a maior explosão popular de alegria já ocorrida no Brasil. Nenhum fato histórico, antes disso, justificou algo parecido. É fácil entender: foi nossa primeira vitória numa Copa e o povo vinha de duas grandes frustrações, as derrotas de 1950 e 1954.

A vitória no Estádio Nacional de Santiago, no Chile, em 1962, como esperado colocou nas ruas também uma grande festa. Mas nada foi comparável a 1958. Meu próprio sentimento na época ajuda a explicar isso: já tínhamos nos acostumado com a idéia de ser campeões do mundo. Quatro anos curtindo a posse da Taça Jules Rimet injetaram no imaginário popular essa “naturalidade”. Creio que seja por isso, agora que somamos cinco títulos, que nós, brasileiros, tenhamos tanta dificuldade em lidar com a derrota.

Não entendo nada do assunto, mas sempre achei fascinante ler e ouvir análises e tentativas de interpretação do comportamento das multidões. O futebol e a política ensejam cardápio rico e variado para isso. Vejam o Corinthians, por exemplo: ficou muitos anos sem ganhar o campeonato paulista. Naquela fase de vacas magras a torcida comparecia aos estádios para dar força ao time. Foi só vencer e o pessoal sumiu dos estádios. Ou seja, a torcida já estava realizada, satisfeita.

Para nós, ganhar a Copa virou uma espécie de obrigação, como é para os norte-americanos vencer o mundial de basquete, ou para os quenianos ganhar maratonas. Quando isso não acontece a tristeza e frustração são brutais, deixam o país literalmente prostrado, em luto. Jamais vou esquecer daquela tarde vazia e silenciosa, em São Paulo, logo depois que perdemos para a França, e ainda humilhados pela goleada e chapéus do Zidane. Qualquer outro país (de menores chances no futebol) teria festejado o vice no mundial como uma fabulosa vitória, como realmente é. Para nós foi algo próximo da morte. Nas demais grandes potências do futebol mundial não é diferente. Vice, e nada, acabam sendo a mesma coisa. Ou até pior, porque o esquadrão chegou até lá, esteve a poucos passos e minutos do título, sentiu o aroma do ouro, viveu o sonho.

Trabalhando na indústria automobilística, na assessoria de imprensa da Ford, aprendi que numa segunda-feira pós-derrota corintiana a produção na linha de montagem dava problemas. A peãozada estava furiosa, ou triste, e trabalhava mal. Foi sempre assim. O inverso também era verdadeiro. Eis, pois, uma das razões que me levam a querer muito essa Copa de 2010. Estamos num momento bom da economia, reservas cambiais e superávit primário saudáveis, safras gordas, o país tem repercussão no exterior, há avanços inegáveis em vários setores, existem perspectivas, com o Pré-Sal. A auto-estima do brasileiro neste momento é positiva, e uma prova disso é o altíssimo índice de aprovação do governo, jamais visto antes, em tempo algum. Calma, não estou fazendo aqui proselitismo pró-Lula ou Dilma. Estou constatando apenas um fato real e indiscutível, sob uma ótica de observador. A gente pode brigar com o governo, mas não pode brigar com os fatos reais, nem com a História. Você poderá odiar Hitler, como também odeio, mas jamais poderemos dizer que não teve apoio do povo alemão. Só não interpretem isso como algum comparativo, seria absurdo demais, além de injusto. Estamos apenas falando sobre comportamento de multidões e objetivamente de coisas factuais. Quem acompanha este blog já cansou de ler críticas que faço ao Lula, sobretudo nas suas alianças com corruptos notórios. E isso não significa que eu goste da oposição, pois quando chega ao poder age da mesma forma.

O comportamento das multidões é sempre interessante, curioso, intrigante e, por vezes, até desconcertante. Pode ser até insondável. Há o risco de Collor ganhar em Alagoas, eis um exemplo. Existem tiranos idolatrados. Notórios ladrões têm liderados. A massa oscila entre a mais pura ingenuidade e infantilidade a momentos de luz, quando rejeita a opressão. A Primavera de Praga, esmagada pelos tanques soviéticos, e muito depois a queda do Muro de Berlim, foram momentos de luz. O ensaio de rebelião popular espontânea, sem lideranças, na morte do Getúlio, em 24 de agosto de 1954, foi outro. Entenda-se aqui luz não como erro ou acerto, aprovação ou desaprovação, mas apenas como capacidade de reagir e tentar algo melhor para seu destino, direito básico da humanidade.

Estes exemplos mostram que as multidões são também diferentes, movidas pelas mais diversas motivações. Algumas enfrentam a polícia nas ruas por causa de um jogo de futebol. Outras porque buscam dignidade no seu direito de viver. Comparando, é a alienação primitiva de um lado; a consciência e politização de outro. Dificilmente elas se misturam. Há multidões manipuláveis. Jânio Quadros foi o mestre disso, com seu populismo de caspas e sanduiches de mortadela. Mas já estive no meio de um milhão de pessoas, no Vale do Anhangabau -- que pediam Diretas Já! -- com um comportamento maduro e impecável, entendendo o conteúdo jurídico e aplaudindo o discurso elegante de Sobral Pinto.

As chamadas elites conservadoras odeiam as multidões, exceto quando se trata de ganhar dinheiro a custa da ignorância delas. Já os políticos populistas precisam delas para sobreviver. E sejamos francos: pode haver algo mais coletivamente imbecil do que uma multidão num estádio soprando cornetas? Ou consumo de massa induzido por novela de TV?


Esse humor popular, contudo, é volátil. Pode despencar em poucos dias, ou até horas. Que o diga Sarney, na época do Plano Cruzado. Que o digam políticos que perderam eleições depois de um debate. Que o diga Dunga, se perder a Copa. Duvido que ache alguém que ainda o defenda. Do mesmo jeito que pode voltar como grande herói. E que assim seja! O povo estará feliz, isso é o que importa. Circo é bom e faz parte da vida. Se tiver pão, melhor ainda.

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*Milton Saldanha
é jornalista e tangueiro. Mas dança também samba e torce contra a Argentina. www.jornaldance.com.br
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