domingo, 5 de julho de 2009

PERDIDOS NUMA FAVELA DE TRAFICANTES

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ERRO DE PERCURSO PÕE EM RISCO
A EQUIPE DE ESPORTES DA RÁDIO
OSWALDO LAVRADO
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Em quase todas as viagens, independente do meio de transporte, acontecem coisas inesperadas. Umas inusitadas e surpreendentes outras alegres e emocionantes e algumas tristes e quase trágicas. Um sábado de março de 1992 embarcamos na viatura da Rádio Diário do Grande ABC para o Rio de Janeiro onde a equipe iria transmitir o jogo Vasco x Santos, no Estádio de São Januário, pelo Brasileirão. No "golzinho" da emissora estava o motorista José Moraes (Lampião) e ao seu lado o narrador Edward de Souza. Atrás, eu e o Maurício Muniz, dublê de repórter e operador de áudio. A viagem pela complicada Via Dutra transcorreu sem maiores problemas, até mesmo na Serra das Araras, apesar de alguns vacilos do nosso piloto.
Na entrada do Rio, pela Avenida Brasil, o Zé Moraes se enganou e perdemos o caminho que nos conduziria ao hotel de costume, localizado em uma travessa da Rua do Catete. Porém, nada que um contorno pela rotatória do aeroporto Santos Dumont e pelo Largo do Machado, não solucionasse o pequeno impasse e chegamos a hospedaria preferida da equipe. Do hotel a gente avistava o Palácio do Catete, um tanto deteriorado pelo descaso do governo que após a inauguração de Brasília abandonou o prédio que abrigou o presidente-ditador Getúlio Vargas, seu último inquilino.
Nesse ano, 1992, o Rio de Janeiro sediou a Expo/92, recebendo presidentes de vários países. Em função disso a Cidade Maravilhosa ficou tomada por soldados do exército para dar segurança aos ilustres visitantes. Em cada esquina, avenida, rua, ponte, passarela ou pedaço de praia havia um contingente de homens fortemente armado. Comentavam, à época, que o governo carioca havia feito uma espécie de pacto com os marginais para que a Expo transcorresse em paz. E assim foi. Na noite de sábado trocamos o hotel pela mesa de um restaurante na Rua do Catete, cujo dono, um simpático português, foi com a nossa cara e ficou com a gente no bate papo informal. Por volta das 23h, o Edward resolveu ir dormir: "vocês vão ficar? eu vou descansar", disse. Na porta, o portuga pegou o Edward pelo braço e sugeriu: "mando um empregado acompanhar você". Nosso companheiro retrucou: "não é necessário, o hotel fica a 100 metros daqui". O patrício explicou: “é, parece que vocês não conhecem mesmo o Rio. A esta hora você será assaltado assim que colocar os pés na rua, com meu funcionário junto nada vai acontecer". Assim foi feito e o Edward chegou inteiro ao hotel. O mesmo esquema foi utilizado na nossa saída, uma hora depois.Domingo, tipo 11h, rumamos para o Estádio de São Januário, Bairro de São Cristóvão. Mesmo tendo estado no Rio diversas vezes nenhum de nós sabia exatamente onde ficava o campo do Vasco. A informação, obtida com um taxista, nos conduziria a uma travessa da Avenida Brasil e ao nosso destino. Uma rua deserta e cercada por muros altos sugeria que o local abrigava várias pequenas fábricas e, por ser domingo, não havia ninguém no pedaço. Avistamos, então, um homem caminhado pela calçada. Encostamos o carro e o Edward perguntou: "por favor cavalheiro, onde fica o campo do Vasco ?". Solícito, o homem, bem ao estilo carioca, se aproximou e apontando o indicador para um lado, tentou dizer: "o...o...o... cam...cam... campo do vas...vas...vasco...", não deixei o cidadão terminar. Ele era gago. "vamos embora Lampião, até o rapaz completar a explicação o jogo já acabou". Estávamos um tanto atrasados e transmissão de rádio tem hora certa para entrar no ar. O Edward agradeceu o homem e duas quadras adiante encontramos nosso destino. Dentro do estádio o Lampião estacionou a viatura da rádio na primeira vaga disponível. Eu, o Edward e o Maurício juntamos os apetrechos da rádio e no interior de um elevador, acredito, do século 19, chegamos ao piso superior onde ficavam as cabines. Atentos ao trabalho de instalação do equipamento, ouvimos uma gritaria vinda do pátio de estacionamento. Por uma janela da cabine vi o Lampião e um homem quase se agredindo. Desci rápido e tentei amenizar a ira dos valentes. O homem foi dizendo: "olha moço, meu nome é Jorge, sou administrador deste estádio há 40 anos e essa vaga onde está o carro da sua rádio é exclusiva do doutor Eurico (Eurico Miranda, então presidente do Vasco). Aqui mando eu e nem o doutor Eurico mete o bico no meu trabalho, portanto tira essa tranqueira daí agora mesmo". Pedi ao Lampião que tirasse o carro da vaga e elogiei com certo sarcasmo e muita hipocrisia o "seô" Jorge pela dedicação ao trabalho. Com a mesma dose de hipocrisia ele me abraçou, abraçou o Lampião, e a pendenga foi contornada. Subo novamente às cabines e vejo o Edward com cara de poucos amigos: "que foi agora?", resmunguei. "A maleta de transmissão desapareceu", respondeu ele. Pra encurtar o papo, a maleta, tipo 007, uma das mais modernas à época, estava com Loureiro Júnior, então comentarista da Rádio Record e que a tinha levado por engano. Devolveu, com as devidas desculpas, a tempo de ser instalada e evitar que eu tivesse um infarto. Cumprimos nosso trabalho de transmissão de um jogo horroroso (0 x 0) e partimos com destino a São Paulo. Mas... Na Avenida Brasil, único acesso de entrada e saída, via terrestre, do Rio, o Lampião se confundiu em uma rotatória mal iluminada e sem nenhuma sinalização. Pegou uma via marginal que foi se distanciando a cada metro rodado. Entendemos que estávamos perdidos quando adentramos o labirinto de uma favela (não lembro o nome), aquela que dia sim, o outro também, tem tiroteios, assaltos etc. Numa calçada de terra e na mais completa escuridão avistamos uma senhora, ao lado de umas cinco crianças, em um ponto de ônibus próximo a uma igreja evangélica. Sem descer do carro, o Edward perguntou: “por favor minha senhora como a gente faz pra pegar a Via Dutra ? A mulher encostou no carro e quase sussurrando disse: " vocês são de fora, saiam logo daqui, entrem na primeira travessa e lá se informem pra onde querem ir, vão, vão depressa, com o logotipo do jornal estampado nesse carro, vocês tem vida curta por aqui". O Edward agradeceu e, aos berros, guiou o Lampião pelo caminho indicado pela religiosa. Alcançamos a Via Dutra já na metade da Serra das Araras e encaramos as quase sete horas de viagem até São Paulo. Um mês depois o Santos foi jogar com o Flamengo no Maracanã. Um grupo de torcedores santistas, que foi ao Rio assistir o jogo, também errou o caminho de volta e, como nós, foi parar na mesma favela. No entanto, não tiveram a mesma felicidade de encontrar a senhora evangélica e o carro dos rapazes (estavam em quatro) foi metralhado. Um deles morreu e os outros três tiveram que deixar o local correndo até encontrar a polícia. As imagens exibidas pelas TVs e as fotos dos jornais do dia seguinte deram, a nós da Radio Diário, a certeza que o local era o mesmo onde estivemos e escapamos graças a mulher acompanhada das cinco crianças. Ainda em 1992, voltamos ao Rio de Janeiro umas quatro ou cinco vezes, porém, todas de avião.
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*Oswaldo Lavrado - jornalista/radialista - trabalhou no Diário do Grande ABC (rádio e jornal) e comandou o Departamento de Esportes da Rádio Dário por 10 anos. Recebeu a Medalha João Ramalho, condecoração concedida pela Câmara de São Bernardo, junto com a equipe esportiva da Rádio Diário, pela organização e realização da Copa Infantil de Futebol do Grande ABC, que reuniu cerca de 1.700 de jovens entre 7 e 14 anos e pelos relevantes serviços prestados à comunidade. Atualmente é editor do semanário Folha do ABC.
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