quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

NOITE DE PAZ
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Acocorou-se e se pôs em posição para executar o trabalho, alerta a todos os movimentos ao redor. Ao olhar a lua e se deparar com o céu estrelado, deixou que a imaginação flutuasse por alguns instantes, tempo suficiente para que imagens perdidas retornassem à mente, fortes, nítidas, igual a um filme projetado na tela do cinema. Estava tranquilo, certo de cumprir o dever com sucesso, como ocorrera inúmeras vezes, de acordo com o previsto. Dispunha de alguns minutos antes de concluir a empreitada, as lembranças que afloravam abruptamente não se constituiriam em empecilhos.
Ele se via ainda criança, como se estivesse frente a um espelho gigante. O quarto era simples, apenas a cama e um velho armário. As paredes, pintadas a cal, desbotadas, com teias de aranha junto ao teto, onde uma luz pendia presa por um fio. Mexia-se debaixo do lençol, às vezes abria os olhos e espiava os sapatos, deixados à beira do leito. Nenhum pacote ao lado, repetia-se a rotina de sempre. Logo mais teria de se levantar, assear-se e preparar-se para o ralo café da manhã, sem ânimo para sair à rua, encontrar-se com os moleques e mostrar os presentes recebidos.
Em seu devaneio infantil justificava a demora. Papai Noel se atrasou, perdeu-se em determinada quadra do caminho, sofreu algum tipo de acidente, ficou impedido de atender seu pedido, o desejo de ganhar um trenzinho. A realidade rompeu o sonho, ergueu-se amuado, abriu o armário, juntou os velhos soldadinhos de chumbo, espalhou-os pelo chão, em posição de batalha. Gostava do comandante, com uniforme azul, montado no cavalo. E também dos canhões, que enfileirava na dianteira da minúscula legião. Não sabia direito como se operava uma guerra, como seriam os campos de batalha, mas supunha que os mais fortes derrotassem os inimigos fragilizados pelas perdas de homens em embates ferozes. Acreditava que, quando crescesse, seria um grande estrategista militar, com tropas treinadas para receber suas ordens de avançar.
Quando se cansava da brincadeira socorria-se de velhos gibis, encontrados no lixo. Olhava as figuras, admirava o arrojo dos mocinhos que sempre escapavam dos perigos e armadilhas e venciam os bandidos. Peito empinado rumava para o quintal, armava-se com sua espada feita de cabo de vassoura e duelava com galhos e ramos, transformados em piratas.
A adolescência pouco alterou seu ritmo de vida. Raras aventuras, lazer quase nenhum, alguns namoros isolados de pequena duração. Sem nada para oferecer, as meninas logo se afastavam, trocavam-no por rapazes mais abastados, que convidavam para sorvetes, bailes alegres e movimentados, beijinhos roubados.
Em busca de ocupação, alistou-se no Exército. Nova decepção. Não teve oportunidade de participar de ações militares, de pesados exercícios e manobras. Passou o período de caserna recebendo encargos vexatórios, limpar os banheiros dos oficiais, engraxar sapatos dos superiores. De positivo, unicamente o manejo de armas, o aprendizado de montar e desmontar, de atirar com perfeição, acertando alvos dispostos a cem metros de distância.
Saiu como entrou: soldado raso, nem mesmo a cabo se elevou, para ter o gosto de uma distinção, soldo maior. Na rua, vagou sem destino, à espera de uma luz que indicasse o rumo a tomar. Entrou numa igreja, no silêncio do templo contemplou o presépio, o menino pobre na manjedoura. E santos martirizados nos altares. Pareceu-lhe ouvir uma voz distante e repetitiva, um chamamento do além. Compreendeu que a injustiça sempre prevaleceu pela vontade dos homens, de nada valiam os ensinamentos e exemplos, a maldade foi enxertada na alma, é inerente à natureza humana. O clamor permanecia em sua cabeça, ecoava, instigava, tinha de se opor à crueldade, restabelecer a concórdia.
Por acaso, na praça, deparou-se com a dor de mulheres que choravam a perda de uma menina, atingida por bala perdida durante confronto entre policiais e traficantes. Condoeu-se com o desespero da mãe e se manifestou, revoltou-se contra a impunidade. Sua veemência ao erguer os braços, gesticular e clamar por justiça despertou a atenção dos manifestantes que obstruíam a rua e incendiavam pneus.
Naquele bairro esquecido, muitos sentiam na garganta o sabor amargo do sofrimento, a amargura de prantear a morte. Alguns, mais exaltados, disseram que ele poderia ser um aliado no combate ao crime, um cidadão capaz de se igualar a um juiz severo. Eles precisavam de um homem corajoso que pudesse protegê-los, livrando-os do perigo que rondava suas casas.
Foi assim que encontrou trabalho decente que lhe garantiria sustento, além de lhe proporcionar satisfação, aquela alegria primitiva de se saber benfeitor, de se julgar acima do mal, ombreando-se aos heróis que povoaram as fantasias da infância. Os rendimentos chegavam por meio de mãos trêmulas, sofridas, de gente da comunidade que o queria por perto, mas sem demonstrar proximidade ou amizade verdadeira. Respeitavam-no do mesmo modo que o temiam, movidos pela terrificante força do medo.
Orgulhava-se das missões cumpridas, nunca havia falhado. O serviço era solitário, dispensava a participação de auxiliares. Recebida a encomenda, traçava um plano seguro, espreitava, escolhia o local e o horário, preferencialmente em horas desertas. Chegado o momento, o coração palpitava e ele se alegrava, como agora.
Olhou o relógio, respirou fundo. Em seguida, apagou da memória o passado, ergueu o fuzil e aguardou. Quando a vítima escolhida abriu a porta da casa e se dirigiu ao jardim para regar as plantas, apertou o gatilho, apenas um disparo, certeiro. O silenciador impediu o estrondo da detonação, o ruído do trovão que indica a força bruta da natureza ou a ira de Deus. Com um sorriso nos lábios, acondicionou a arma na sacola, ergueu-se. O matador profissional tirava de circulação mais um traficante de drogas que a Justiça deixara em liberdade. Depois, aproximou-se do cadáver, ensanguentado. Deitou sob o peito do desafeto um cartão desejando Feliz Natal e foi cumprir o resto da missão: deixar um lindo presente para os órfãos. Papai Noel não podia se ausentar, que é que as crianças iam pensar? Era Noite de Natal.
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*Guido Fidelis,
jornalista, escritor cosmopolita, também advogado é outro dromedário da imprensa paulista. Ex-Última Hora, Diário do Grande ABC, A Nação e A Gazeta, sua pulsante literatura deixa pouca dúvida a respeito de suas preferências: drama policial com um aroma decididamente neonaturalista. Guido Fidelis tem mais de uma dúzia de livros publicados. A última obra de Fidelis, "Dádiva", foi lançada no final do mês passado pela RG Editores, de São Paulo.
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