terça-feira, 31 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Foca é um dos animais mais bonitos que existem. Geralmente cinza, brincalhão, pode ser visto em grandes parques aquáticos ou na natureza mesmo, brincando com bolas, pulando de lá pra cá e sempre fazendo coisas engraçadas para os turistas e se mostrando. Pois é, isso é foca no reino animal. No meio jornalístico também existe o termo "foca". É aquele jornalista recém-formado (ou estagiário), jovem e ávido por mostrar serviço. Na ânsia, às vezes, ele acaba por pura inexperiência cometendo alguns erros. Como quer mostrar serviço, ele acaba se destacando mais, errando mais (afinal, está aprendendo) e - em outras ocasiões - desempenhando um serviço melhor do que alguns jornalistas mais antigos. Por isso surge o apelidinho infame, foca. Vários repórteres novatos são submetidos a grandes vexames e inconcebíveis humilhações, somente para satisfazer a megalomania de alguns colegas veteranos. Quando os redatores ainda não contavam com computadores para redigir seus textos, vi muito editor rasgar, na maior cara dura, sem sequer ler, laudas e mais laudas redigidas por assustados e inseguros calouros, que lhes valeram horas e mais horas de pesquisa, de deslocamentos não raro abrindo mão do almoço ou do jantar (quando não de ambos) e de redação, em máquinas de escrever em geral velhas e com defeito, com o entusiasmo de quem escrevia uma reportagem digna do Prêmio Esso. E por quê? Somente como infantil demonstração de poder! Rasgavam na maior cara dura e diziam: "Não gostei! Escreva outra vez!". E ai do repórter que se queixasse para a chefia! Se eventualmente o fizesse, estaria com os dias contados no jornal. O premiado jornalista Édison Motta inicia hoje a série “Trapalhadas de um foca”, com histórias engraçadas e verídicas acontecidas no início da carreira dos, hoje, consagrados profissionais de jornalismo.
Edward de Souza
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INÉDITO
PARTE XIV
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SÉRIE
"TRAPALHADAS DE UM FOCA"
CAPÍTULO I
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Meu primeiro cadáver
ÉDISON MOTTA
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Cadáver, defunto, presunto eram coisas distantes da minha adolescência no começo daqueles anos 70. Tinha, como a maioria das pessoas, a sensação de que coisas horríveis não acontecem com a gente. Havia uma distância enorme entre as notícias de jornal e a realidade do meu mundo. Era assim, enquanto não havia escolhido ser jornalista como profissão, até que deparei com... Meu primeiro cadáver!
Aconteceu numa tarde de sábado, na primeira semana de trabalho, aos 17 anos, como repórter do Diário do Grande ABC. Cheguei à casinha – como carinhosamente chamávamos a redação – por volta das 9h30 para cumprir um plantão. Todo o pessoal estava envolvido com o fechamento da edição de domingo. Na pauta, apenas um show de artistas desconhecidos, num clube social da região. O show estava programado para começar as 14 h. Então, havia tempo de sobra para “plantonar”. Mas, naqueles tempos, sempre aparecia trabalho. No meu caso, eram longas folhas de teletipos para “pentear”. Que significava anotar ponto, vírgula, parágrafo, letras maiúsculas e minúsculas – caixa alta ou caixa baixa – naquelas folhas impressas em carbono que deixavam as mãos enegrecidas.
Depois de “penteados” os telegramas voltavam para a diagramação e, em seguida, eram encaminhados para composição, a chumbo, nas oficinas. Fiquei lá, “penteando” um telegrama após o outro até que sai com o pessoal – Colovatti, Renato Campos e outros – para comer uma deliciosa feijoada no bar do Roberto. Curiosamente, um japonês com esse nome à frente de um “sujinho” que era o ponto de encontro do pessoal da redação.
Depois da feijoada, acompanhado do Mário Otsubo, fotógrafo, subi no fusca “pilotado” pelo mineiro Barbosa. Todos estávamos sonolentos e a perspectiva do “show” não era nada animadora. De qualquer maneira, pauta é pauta e precisa ser cumprida. Quando chegamos ao local, o mico: o apresentador anunciou, com entusiasmo, pedido de aplausos e chamada ao palco, a presença da equipe de reportagem do Diário. Em 1971, aonde chegava, a equipe do Diário causava sensação. Legado dos notáveis jornalistas que nos antecederam no News Seller e nos primórdios do jornal em sua fase diária.
Anotei os nomes dos artistas, respectivas músicas, dos promotores, dei uma espiada geral na platéia e dei-me por satisfeito. Não desejava, em hipótese alguma, acompanhar o desdobramento daquele “show”. Mal sabia, um outro espetáculo, mais realista, me aguardava.
Voltamos à redação. Eram mais ou menos 16h30. Antes mesmo que descessemos do carro veio o Onofre Leite, secretário de redação, o “manda-chuva” da época, esbaforido, anunciando um latrocínio que acabara de ocorrer. Com o endereço do crime anotado num papel disse: “Corram, talvez vocês cheguem antes mesmo da polícia”. O prestígio do Diário e o bom relacionamento construído pelo Renato Campos, o jornalista policial do jornal, fizera com que o fato fosse comunicado à redação, pela central de operações da Polícia Militar, tão logo dele tomaram conhecimento. De repente, eis-me a caminho de um l a t r o c í n i o - confesso, eu nem sabia o que era aquilo à época - recém-saído de um “show” de qualidade questionável. Morri de medo. Porque, evidentemente, imaginava que encontraria um cadáver pela frente.
Quando criança, tinha pavor de gente morta. Em virtude de um trauma ocorrido no velório de um vizinho, ficava aterrorizado com a morte e evitava até mesmo passar na frente de casas funerárias.
Na minha infância, velórios nas próprias residências, na sala da família, eram comuns. E eu, curioso como sempre, fui um dos primeiros a me cercar do caixão assim que ele foi trazido. Quis ver o defunto e fui atendido: a viúva ergueu-me face a face com o falecido. Que, sei lá porque até hoje, tinha chumaços de algodão nas narinas, nas orelhas e os olhos estavam cobertos por duas moedas. Dei um grito, saí correndo e prometi a mim mesmo que jamais freqüentaria um velório. Promessa não cumprida, naturalmente. Quando a gente cresce, vai-se o encanto da infância e vem o choque frio da realidade.
O Onofre Leite tinha razão: chegamos antes da polícia porque a cena do crime estava próxima, a umas dez quadras do jornal. Respirei fundo, criei coragem, com o coração a mil, e fui entrando, acompanhado do Otsubo. O Barbosa, esperto, ficou no fusca: reclinou o banco para tirar uma invejável soneca, almejada desde a suculenta feijoada. O local, uma mercearia na Vila Bastos, em Santo André, tinha uma residência no fundo onde o proprietário morava com a família. Os ladrões sabiam que no sábado à tarde encontrariam féria robusta. Entraram, enfiaram um revolver 38 na testa do coitado do dono e o obrigaram a entregar o dinheiro. Ele disse que guardava nos fundos. Mas não deu tempo, alguma coisa aconteceu errada e eles dispararam, à queima roupa, no pobre do proprietário. Encontrei o cadáver em “decúbito dorsal”, como costumavam descrever as cenas os antigos escrivães de polícia. Em meio a uma enorme poça de sangue e, o pior: pedaços de miolos espalhados pelo chão e pelas paredes. Horripilante. Fiquei ali, tétrico, durante alguns segundos que pareceram eternidade. Nem mesmo sabia o que perguntar diante do pânico e choro dos familiares e meu próprio desmonte. Foi quando o Mário Otsubo chegou até mim e disse: olhe, Édison, acho que não dá foto. Está muito chocante e o jornal não vai publicar. E eu, de imediato e sem pensar: “não, Mário, você tem que dar um jeito e fotografar, é sua obrigação. Lá eles decidem se publicam ou não”.
Foi meu inferno! Um irmão da vítima escutou a conversa e, irado, achou o cúmulo do absurdo aquela minha “frieza” diante do mano cadáver. Vixe! Logo eu, todo comovido e sem ação... Quase fui linchado! O ódio dos familiares diante do ocorrido reverteu-se contra mim. Fui saindo por um corredor lateral, passei a correr até alcançar a rua. Felizmente, naquele momento acabava de chegar a viatura policial. Que me salvou. Protegido dentro da viatura precisei esperar que os policiais anotassem os fatos, registrassem seu boletim, para poder recuperar as informações de que tanto precisava para escrever a matéria. Não houve foto. Nem mesmo o Otsubo conseguiu entrar de volta na cena do crime.
Cheguei à redação e não disse nada. Escrevi a matéria, que deve ter ficado uma porcaria. Tanto que, no dia seguinte, foi reduzida a uma pequena nota de cinco linhas no meio do noticiário. Meu primeiro cadáver foi também meu primeiro tropeço no jornalismo.
Mas as surpresas não acabavam aí. Eu freqüentava o segundo ano colegial no “Américo Brasiliense”. E notei que um colega, que sentava na carteira ao lado, sumiu da escola. Faltou durante duas semanas. Na terceira, quando voltou, perguntei-lhe: o que houve? Quer perder o ano?
- Não, Édison, faltei porque assassinaram o meu pai.
- É mesmo, meus sentimentos, como foi?
- Ora, você sabe. Você esteve lá em casa tentando fazer matéria para o Diário do Grande ABC...
Aprendi com meu primeiro cadáver, pai do meu colega, a barreira que o jornalismo policial impõe àqueles que desejam seguir carreira. Não que seja necessário ser insensível. Mas jornalismo não é literatura. Requer frieza, argúcia e objetividade. A dor da gente não sai no jornal, como ensina o mestre Chico Buarque.
*Édison Motta, jornalista e publicitário é formado pela primeira turma de comunicação da Universidade Metodista. Foi repórter e redator da Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil; editor-assistente do Estadão; repórter, chefe de reportagem, editor de geral (Sete Cidades) e editor-chefe do Diário do Grande ABC. Conquistou, com Ademir Médici o Prêmio Esso Regional de Jornalismo de 1976 com a série “Grande ABC, a metamorfose da industrialização”. Conquistou também o Prêmio Lions Nacional de Jornalismo e dois prêmios São Bernardo de Jornalismo, esses últimos com a parceria de Ademir Médici, Iara Heger e Alzira Rodrigues. Foi também assessor de comunicação social de dois ministérios: Ciência e Tecnologia e da Cultura. Atualmente dirige sua empresa Thomas Édison Comunicação.