Atualmente, a maior parte do tempo permaneço em casa. Em consequência de alguns remédios, responsáveis por eventuais tonturas, não posso dirigir veículo. Contento-me em pegar um ônibus e ir até o centro da cidade ou, senão, andar a pé pelos arredores de onde moro. Como fico em casa, minhas companhias permanentes são três cachorros e dois gatos. Destes, não nutro muita afeição, mas, quanto aos cães, os adoro – uma adoração vinda desde a infância, quando havia o Duque no quintal de casa. Era um vira-lata de pelo amarelo, de estatura média para a sua raça, e bastante brincalhão. Meu pai, que nunca demonstrou muito afeto pelos cachorros, certa vez o levou numa caminhonete para bem longe de nossa casa, para um sítio distante. Fiquei muito triste com essa decisão e tive a mesma densidade de alegria quando Duque reapareceu, dois dias depois, um pouco mais magro, faminto... O abracei com carinho, como quem abraça um amigo querido e, nesse dia, reparti o meu almoço com ele.
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Agora, convivo com o Astor, um presente do meu irmão caçula, com
Paquita, uma cadela que vivia nas ruas, e Filomena, a Filó, que adotei depois de vê-la sendo maltratada. De todos, o Astor é o meu amigo e confidente. Quando me sinto só, com vontade de conversar, falo com ele, conto meus problemas e ele parece compreender. A Paquita, a mais obediente e, a Filó, uma menina travessa, que late até para mosquitos. Cada um do seu jeito, eles fazem a minha alegria. Há ainda as gatas, Melissa, um presente que deram para minha mulher, e a Jeane, uma gata que vivia abandonada nas ruas. Como todos os gatos, não dão trabalho e nem fazem sujeira. São dóceis e com os olhos verdes, característica da raça, de darem inveja a qualquer ser humano, tão lindos que são.
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Gato escaldado tem medo de água fria. Esse dito popular me veio à mente
quando, há dias, comecei a sentir irritação do lado direito da garganta. É que, exatos quatro anos atrás, ao engolir a saliva, percebia algo errado. Pensei ser algo simples e procurei o doutor Carlos Tavares, clínico geral que, ao pesquisar no fundo de minha boca com uma espátula de madeira, foi lacônico: “Procure imediatamente o Hospital A. C. Camargo”. Jamais ouvira falar em hospital com esse nome e, no mesmo dia, por telefone, descobri ser a denominação do Hospital do Câncer, como é mais conhecido.
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Com a mesma filosofia, não reclamo da minha situação. Há quatro anos
que me alimento de sopa e pedaços de peixe, café com leite e bolacha. Ultimamente, incrementei as minhas refeições com um bolo preparado por uma vizinha. Também ouso tomar alguns goles de vinho e cerveja, como se estivesse a comemorar alguma conquista. Minha mulher me incentiva, dizendo que já sou um vencedor – venci a doença por duas vezes seguidas, ela diz. E fica me lembrando que, não vai demorar muito, estaremos morando em Iguape, numa casa simples, mas com amplo terreno para os cães poderem passear à vontade, e o que é mais atrativo: a poucos quilômetros da Ilha Comprida, com suas lindas praias.
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Na próxima quarta-feira, o vigésimo oitavo e último capítulo de "Memória Terminal", escrito pelo jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50.
(Edward de Souza).
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