quinta-feira, 21 de outubro de 2010

QUARTA-FEIRA, 20 DE OUTUBRO DE 2010



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Atualmente, a maior parte do tempo permaneço em casa. Em consequência de alguns remédios, responsáveis por eventuais tonturas, não posso dirigir veículo. Contento-me em pegar um ônibus e ir até o centro da cidade ou, senão, andar a pé pelos arredores de onde moro. Como fico em casa, minhas companhias permanentes são três cachorros e dois gatos. Destes, não nutro muita afeição, mas, quanto aos cães, os adoro – uma adoração vinda desde a infância, quando havia o Duque no quintal de casa. Era um vira-lata de pelo amarelo, de estatura média para a sua raça, e bastante brincalhão. Meu pai, que nunca demonstrou muito afeto pelos cachorros, certa vez o levou numa caminhonete para bem longe de nossa casa, para um sítio distante. Fiquei muito triste com essa decisão e tive a mesma densidade de alegria quando Duque reapareceu, dois dias depois, um pouco mais magro, faminto... O abracei com carinho, como quem abraça um amigo querido e, nesse dia, reparti o meu almoço com ele.
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Duque foi o meu primeiro cão. Em Santo André, outros cães me fizeram companhia. Um deles, uma cadela. Chamava-se Diana e para ela dediquei uma crônica, publicada em uma revista regional, quando meu pai – ele novamente – sumiu com ela. Essa atitude me deixou bastante aborrecido, mas nada pude fazer – já era casado e levava a minha vida longe da casa paterna. Outro cão, ao qual eu invejava, era o Rex. De cor um pouco mais amarelada que a do Duque, era, por assim dizer, um garanhão. Não podia ver uma cadela no cio que a assediava para o coito e, na tentativa de realizar o seu intento, era capaz de enfrentar uma matilha. Morreu depois de um ato de amor com uma cachorra, satisfeito, feliz, atropelado por um ônibus
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Agora, convivo com o Astor, um presente do meu irmão caçula, com Paquita, uma cadela que vivia nas ruas, e Filomena, a Filó, que adotei depois de vê-la sendo maltratada. De todos, o Astor é o meu amigo e confidente. Quando me sinto só, com vontade de conversar, falo com ele, conto meus problemas e ele parece compreender. A Paquita, a mais obediente e, a Filó, uma menina travessa, que late até para mosquitos. Cada um do seu jeito, eles fazem a minha alegria. Há ainda as gatas, Melissa, um presente que deram para minha mulher, e a Jeane, uma gata que vivia abandonada nas ruas. Como todos os gatos, não dão trabalho e nem fazem sujeira. São dóceis e com os olhos verdes, característica da raça, de darem inveja a qualquer ser humano, tão lindos que são.
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Havia outra gata. Evitei falar dela por causa da doença que a levou à morte e que lembra a minha: câncer na garganta. À época do diagnóstico, o médico veterinário avisou que a doença encontrava-se em avançado estágio e de nada adiantaria tratamento. Só avisou: quando ela não conseguir mais comer e tiver dificuldade em respirar, autorize o sacrifício para evitar um sofrimento maior. O nome dela era Madame, um presente da irmã Antonia. Até hoje, ao me recordar de Madame, sinto uma grande tristeza, compensada por saber que, durante todos os anos de sua vida em nossa casa, ela teve uma vida tranquila, digna de uma dama.
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Gato escaldado tem medo de água fria. Esse dito popular me veio à mente quando, há dias, comecei a sentir irritação do lado direito da garganta. É que, exatos quatro anos atrás, ao engolir a saliva, percebia algo errado. Pensei ser algo simples e procurei o doutor Carlos Tavares, clínico geral que, ao pesquisar no fundo de minha boca com uma espátula de madeira, foi lacônico: “Procure imediatamente o Hospital A. C. Camargo”. Jamais ouvira falar em hospital com esse nome e, no mesmo dia, por telefone, descobri ser a denominação do Hospital do Câncer, como é mais conhecido.
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E foi nesse hospital que o cirurgião Mauro Ikeda diagnosticou a existência de um tumor cancerígeno do lado esquerdo da garganta. Por isso, nesses dias ando apreensivo e, sem exagero, chego a ficar angustiado só de imaginar que surgiu outro tumor em minha garganta, desta vez do lado direito. Mesmo assim, procuro viver com tranquilidade. Cansei de me preocupar com essa doença – a preocupação não irá devolver a minha saúde e muito menos contribuir para a minha cura e, sim, poderá diminuir a minha resistência física e psicológica frente aos novos desafios que porventura tenha de enfrentar daqui por diante.
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Com a mesma filosofia, não reclamo da minha situação. Há quatro anos que me alimento de sopa e pedaços de peixe, café com leite e bolacha. Ultimamente, incrementei as minhas refeições com um bolo preparado por uma vizinha. Também ouso tomar alguns goles de vinho e cerveja, como se estivesse a comemorar alguma conquista. Minha mulher me incentiva, dizendo que já sou um vencedor – venci a doença por duas vezes seguidas, ela diz. E fica me lembrando que, não vai demorar muito, estaremos morando em Iguape, numa casa simples, mas com amplo terreno para os cães poderem passear à vontade, e o que é mais atrativo: a poucos quilômetros da Ilha Comprida, com suas lindas praias.
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Eu sorrio. Espero, mesmo, viver muitos anos ainda ao lado da Ilca, envelhecermos juntos e, velhinhos, passearmos de mãos dadas como um casal de namorados, para inveja e deboche dos mais jovens. Prometo, para mim mesmo, ser forte. Forte e otimista. Não me deixarei afetar por más notícias. Enfrentarei qualquer situação com naturalidade, como se essa fosse minha sina, esse o meu destino.
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Na próxima quarta-feira, o vigésimo oitavo e último capítulo de "Memória Terminal", escrito pelo jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50.
(Edward de Souza).
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