quinta-feira, 23 de setembro de 2010


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Encontro, no meio de vários envelopes, umas folhas dobradas, já amareladas com o passar do tempo. Abro-as e verifico que se trata de meu mapa astral feito há muitos anos. Procuro saber o que assinalava esse mapa, se não me engano, elaborado por uma jornalista que, nas horas de folga, exercia o papel de astróloga. Ela escreve:
Parto do princípio de que o seu ascendente é Peixes, uma pessoa afinadíssima com o mar, com características inspiradas: amor à arte, às letras, à música, enfim, formas embriagantes de expressão e percepção.
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Coloco Netuno, que é o regente de Peixes, também no ascendente, o que reforça essas características. Netuno é inspiração, o fio de ligação entre o ser humano e o seu criador. Vejo haver algo de místico neste planeta que rege o místico Peixes. Mas este misticismo normalmente não se manifesta nas formas de dogmas, de carolice, mas sim na forma de embriaguez. Netuno é solvente, ele desfaz, como uma lente de água, todas as formas. Tudo em Netuno é confuso, distorcido, caótico, oceânico. Os valores do planeta são muitas vezes tão confusos que este filho de Netuno se afoga em anestésicos em geral: álcool, drogas, sexo, enquanto desligamento do concreto, música, muita música e poesia.
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O ascendente também se refere ao corpo físico. Então, do lado ascendente, está, em conjunção quase exata, o planeta Plutão. Isto porque, segundo os astros, você é suicida. Esta coisa de meta de vida associada à dissolução do corpo, a tal libertação final, a união do finito com o infinito (morte e vida se casam no momento do suicídio) me soou como um encontro de Netuno com Plutão, colocados no signo de Peixes, em aproximação com o ascendente. Plutão é o regente de Escorpião, esse bichinho que se mata, dizem com o próprio veneno, quando acuado. Plutão simboliza a morte, a água parada, a podridão da vida, os esgotos, os cantos da mente onde se escondem os símbolos relacionados à morte, os mitos, os monstros, tudo o que é destrutivo. Plutão mata o que está velho, desde afetos, idéias, valores, até o próprio corpo. E, depois, a pessoa renasce, como fênix, das próprias cinzas. Plutão no ensina a autopurificação por meio de um mergulho profundo na miséria da nossa própria existência.
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Plutão, assim como Netuno, em seu mapa astral, está em aspecto muito tenso com o Sol, o que explica ainda mais a tendência suicida. O aspecto chama-se quadratura. Plutão, a morte, está desafiando o Sol, que é vida, calor, coração, pulsação. Netuno confunde o Sol. Plutão o mata. Traduzindo: o caos desafia a vida, distrai, confunde, vem a morte e a neutraliza. De novo, surge Plutão e Netuno em aspecto tenso com a Lua... Lua, que é igual à mulher, sentimentos, intuição, maternidade, proteção, também é assassinada por Plutão. A Lua está num ponto do mapa chamado meio-céu, superimportante. Você também é lunar, ou seja, almeja, com todo o romantismo que a Lua lhe confere, o amor da mulher, da mãe, a proteção. E, ao mesmo tempo, teima em se colocar neste papel, de superior. Você ama a intensidade. Mas também inconstantemente. Por que a Lua está em Sagitário, signo de muita liberdade, signo de viagens, de autonomia, signo que acha que o gramado do vizinho é mais verde. Então sempre que consegue uma coisa (uma mulher, por exemplo) já enjoa e começa a cobiçar a do próximo.
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A Lua está em oposição ao Sol. O Sol está colocado no fundo do céu, que dá um certo amor à estabilidade (conjugal, familiar, apego às raízes). O Sol, mesmo conservador, se revela ainda como inconstante porque está colocado em gêmeos, signo da comunicação, dos contatos rápidos. Quase todo geminiano é namorador, beija-flor, borboleteador. Ele vai para cá e para lá. Sol está ainda em conjunto (muito próximo) à Vênus, o que faz com que você seja charmoso, e que acredite sinceramente em cada paixão. Esta será a definitiva. Mas não será. De novo, cheio de boas intenções. Outra característica de um tipo namorador, que invariavelmente termina sozinho, sem ninguém, sem afeto: Saturno (solidão, conservadorismo) conjunto à Marte (tesão, ação, iniciativa) no descendente. Outro ponto importantíssimo do mapa diz respeito à nossa procura e ao nosso encontro com o outro.
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E, ao final, um recado para mim: Olha, um mapa é um negócio interminável, e eu só disse algumas poucas coisas. Acho que é difícil você entender tudo isso, por que não está acostumado com nada desses símbolos. Eu lamento se não deu para entender. Tentei ser clara, juro por Deus. Em tempo: Saturno do descendente é que deve fazê-lo sofrer por ter magoado às ex-mulheres. Urano, na 12ª casa talvez explique a sua “tristeza existencial a respeito das injustiças sociais. Urano é socialista, revolucionário e está colocado na casa que diz respeito ao destino, à moira, ou seja, desgraças inevitáveis com as quais você não se conforma.
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Assinado: Liliana.
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Ao ler esse nome, lembro-me então da jornalista, jovem e simpática, que
trabalhava em Santo André, na Sucursal de O Estado de S. Paulo. Devo confessar que, apesar de ser um mapa astral, repleto de simbolismos, reconheço haver, em suas previsões, mais acertos do que erros. Só não previu essa doença, que continua a me maltratar e a me entristecer. Os diagnósticos dos médicos do Hospital do Câncer, depois de verem as últimas imagens feitas da minha cabeça e do meu pescoço, me deixaram intrigado. Primeiro, o otorrinolaringologista Ricardo Testa desconfiou da existência de vestígios de células cancerígenas nas proximidades da laringe. Não confirmou nada, porém. O cirurgião Mauro Ikeda, que me operou da primeira vez, ao analisar as imagens, mostrou-se satisfeito com o que viu. Ressalvou, no entanto, que eu deveria passar, a partir daquela data, por um tratamento alternativo, menos agressivo ao organismo. Essa decisão teria que ser tomada pelo oncologista Ulisses Nicolau. Iria depender dele o meu futuro...
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Minha consulta com o doutor Ulisses estava marcada para dois dias depois, no período matutino. Seria um dos primeiros a ser atendido. No dia e na hora marcada, para minha frustração, fui atendido por um de seus auxiliares que, mesmo de posse do meu prontuário, fez as perguntas banais de quem vê o paciente pela primeira vez: quanto tempo fumou, bebeu muito, e outras mais que já respondera desde a primeira vez quando passei por cirurgia. Esse médico-assistente, depois de analisar as imagens, me disse que tudo estava bem. Tentei ainda argumentar, lembrando que seus colegas médicos haviam indicado a provável necessidade de se fazer um tratamento alternativo devido às suspeitas de haver resquícios de células cancerígenas. Ele mostrou-se irredutível em seu diagnóstico, que foi comprovado por um dos médicos titulares que compareceu logo depois. Marcou a próxima consulta com o doutor Ulisses para daí a três meses. Sai do hospital apreensivo, tendo ao lado o inseparável Jacaré. E se realmente existir essas células cancerígenas? Elas terão mais de noventa dias para se proliferarem e, então, será tarde demais para controlá-las. Esse era e ainda é o meu pensamento, o meu temor, que prolonga a minha agonia.
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Menos de um mês após essa consulta, comecei a sentir enjôos e a perder o apetite. Dos dez quilos que ganhara em quinze dias, quatro sumira em apenas dois. Não conseguia comer. Para agravar a situação, tive diarréia e vômitos seguidos, o que me deixou ainda mais intrigado. Mesmo assim, angustiado pela dúvida, procuro continuar a viver, passando por sessões de fonoaudiologia para ver se consigo voltar a mastigar e a engolir normalmente. A falta de saliva impede que isso ocorra. Tenho que me utilizar de caldos, cremes de legumes, para induzir goela abaixo pequenos pedaços de peixes sem espinho. Experimentei carne e linguiça, para diversificar. Foi inútil. Só mesmo o peixe, leve e macio, passa pela goela, sem provocar engasgos.
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Conformado, sinto inveja, quando num bar ou numa padaria, vejo as pessoas mastigando lanches de pão com mortadela ou comendo pizzas e elas parecem não entender o porquê desse meu sentimento. Meses antes de ser acometido da recidiva, eu já demonstrava estar me recuperando aos poucos, comendo pequenos pedaços de pastel de palmito, regados à cerveja. Agora, nem esse pequeno prazer estou tendo. E dou graças por estar me alimentando sem a ajuda de aparelhos. A vida continua...
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Na próxima quarta-feira, o vigésimo quarto capítulo de "Memória Terminal", do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50.
(Edward de Souza).
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