quinta-feira, 23 de julho de 2009

"ASSISTIMOS A UM MUNDO EM EXTINÇÃO"
NIVIA ANDRES
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A Caverna

A Caverna, do festejado escritor português José Saramago, é uma história de gente simples: um oleiro, um guarda, duas mulheres e um cão muito humano. Esses personagens circulam pelo Centro, um prédio de cinquenta andares onde os moradores usam crachá, são vigiados por câmeras de vídeo e não podem abrir as janelas de casa. Monumento do consumo, o Centro possui um shopping center com lojas, cinemas e teatros, um bingo, um cassino, jardins suspensos, um hospital e até uma muralha da china, tudo asséptico e sufocante, como convém a um símbolo da modernidade. É no Centro que trabalha o guarda Marçal. É para o Centro que seu sogro, o oleiro Cipriano, vendia a louça ordinária de barro que fabricava artesanalmente na aldeota em que vivia - agora, os clientes do Centro preferem pratos e jarros de plástico. Filho e neto de oleiros, sem outros ofícios na vida, Cipriano perde a razão de viver. E a convite do genro, muda-se para o Centro, essa verdadeira gruta onde milhares de pessoas se divertem, comem e trabalham sem verem a luz do sol e lua. Enquanto isso embaixo dos diversos subsolos de estacionamentos e frigoríficos, os funcionários do Centro descobrem uma estranha caverna. Driblando a vigilância, Cipriano consegue entrar lá dentro. O que descobre é aterrador. O oleiro, a filha e o genro retornam à aldeia: são salvos pela lucidez num mundo que se sustenta por sua própria cegueira.
Dois espaços físicos desiguais e opostos. Uma pequena olaria, um centro comercial gigantesco. De um lado a simplicidade, do outro a ostentação - um mundo em rápido processo de extinção, outro que cresce e se multiplica como um jogo de espelhos onde não parece haver limites para a ilusão enganosa. Este romance fala de um modo de viver que vai sendo cada vez menos o nosso e cujas consequências sobre a mentalidade humana são cada vez mais visíveis e ameaçadoras. Todos os dias se extinguem espécies animais e vegetais, todos os dias há profissões que se tornam inúteis, idiomas que deixam de ser falados, tradições que perdem sentido, sentimentos que se subvertem.
Uma família de oleiros compreende que deixou de ser necessária ao mundo. Como uma serpente que despe a pele para poder crescer noutra que mais adiante se há-de tornar pequena, o centro comercial diz à olaria: «Morre, já não preciso de ti». Em A Caverna José Saramago tematiza o processo acelerado de desumanização que estamos vivendo. Com os dois romances anteriores -Ensaio Sobre a Cegueira (1995) e Todos os Nomes (1998) – A Caverna forma um tríptico em que o autor deixou inscrita a sua visão do mundo atual, da sociedade humana tal como a vivemos. Não mudaremos de vida se não mudarmos a vida, eis a questão. A propósito da trilogia, Saramago comentou que têm, de fato, uma identidade própria. “Em primeiro lugar, do ponto de vista formal, são alegorias. Depois, têm todos um estilo mais sóbrio, mais direto, menos expansivo, menos "barroco". E, por último, de uma maneira mais ou menos metafórica, eles são o que chamo a diferença entre a estátua e a pedra. Diria que ao contemplarmos a estátua, não estamos a pensar na pedra que está para além da superfície trabalhada pelo escultor. Agora, já não é a estátua que me interessa, mas a pedra que a faz. (...) Estes três últimos livros são tentativas de ir além da superfície, ver o que está lá dentro e, provavelmente, perder-me no seu interior... O que me preocupa neste momento é saber: que diabo de gente somos nós?"
Para Saramago, "a literatura sempre tem algo importante para dizer num mundo como o atual, onde o ser humano é a coisa mais descartável que há". "Perdemos o sentido do protesto, o sentido crítico, parece que vivemos no melhor dos mundos possíveis", disse. "Vivemos rodeados de inseguranças: insegurança na sociedade, no trabalho, na vida diária", acrescentou. A Caverna não é um manifesto político nem ideológico, mas um romance", disse Saramago, acrescentando que a obra apenas pretende que pensemos para onde vamos. Saramago assegurou ainda que "a globalização econômica é uma nova forma de totalitarismo e que a democracia é um ponto de partida e não de chegada". Em sua opinião, quando os cidadãos creem que a têm, é quando começam a perdê-la. "Assistimos a um mundo em extinção. O único lugar seguro são os shoppings que, curiosamente, não têm janelas. E um lugar sem janelas é uma caverna". O texto completo de A Caverna pode ser encontrado na internet, no endereço:
http://www.esnips.com/doc/a0611a51-6294-415b-913c-ccd990631016/José-Saramago---A-caverna-(rev), assim como outros títulos de Saramago: Todos os Nomes, Terra do Pecado, O Homem Duplicado, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, O Conto da Ilha Desconhecida, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Memorial do Convento, Manual de Pintura e Caligrafia, Levantando do Chão, História do Cerco de Lisboa, Folhas Políticas e A Jangada de Pedra. Leitura boa e gratuita. Aproveitem!
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*Nivia Andres, jornalista, graduada em Comunicação Social e Letras pela UFSM, especialista em Educação Política. Atuou, por muitos anos, na gestão de empresa familiar, na área de comércio. De 1993 a 1996 foi chefe de gabinete do Prefeito de Santiago, Rio Grande do Sul. Especificamente, na área de comunicação, como Assessora de Comunicação na Prefeitura Municipal, na Associação Comercial, Industrial e de Serviços (ACIS), no Centro Empresarial de Santiago (CES) e na Felice Automóveis. Na área de jornalismo impresso atuou no jornal Folha Regional (2001-06) e, mais recentemente, na Folha de Santiago, até março de 2008.

Acesse o blog da jornalista: http://niviaandres.blogspot.com/
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