segunda-feira, 22 de junho de 2009

VIAJANDO COM PORCOS, GALINHAS E CABRAS PARA TRANSMITIR UM JOGO

ALAGOINHAS, INTERIOR DA
BAHIA DE TODOS OS SANTOS
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OSWALDO LAVRADO
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Começava o ano de 1984. O Santo André havia acabado de entrar na Primeira Divisão do Brasileirão e toda a região do ABC estava eufórica com a façanha do Ramalhão (apelido do clube). O primeiro jogo de uma maratona que só acabaria em julho, aconteceu no dia 29 de janeiro daquele ano. Foi na cidade de Alagoinhas (Bahia), cerca 100 quilômetros de Salvador.
A Rádio Diário passava por momentos conturbados em virtude de uma virada no comando interno da emissora. Essa mudança, ocorrida no final de dezembro de 83, provocou a demissão de companheiros (uns 30), que integravam vários departamentos (produção, programação, repórteres, locutores e operadores). O setor de esportes, com 20 profissionais, foi reduzido para 8, exatamente quando assumi o comando do setor.
A rádio tinha tradição em acompanhar os times do ABC e, com ou sem crise, iria transmitir os jogos do Santo André no Brasileirão. Até o dia 10 de janeiro, 19 dias antes da estréia do time na Bahia, o esporte não contava sequer com um patrocinador para "cacifar" a empreitada. Situação que impediria o deslocamento da equipe e, consequentemente, o cancelamento da primeira transmissão externa da emissora. Mas, a luz no final do túnel clareou e dois iluminados patrocinadores surgiram quase no apagar das luzes. Casas Bahia (sim, a sempre presente Casas Bahia, do solidário Samuel Klein), e as Lojas A Esportiva (da família Silvio Duarte, tradicional na região) patrocinaram a transmissão. De acordo com os recursos e condições da época escalamos a equipe que iria até Alagoinhas acompanhar o jogo do Santo André: Rolando Marques (narrador), o gaúcho Jurandir Martins (repórter) e o comentarista Oswaldo Lavrado - que não por acaso sou eu - estava de bom tamanho.
Embarcamos num vôo da Varig das 2h da madrugada (que à época ainda saia de Congonhas). Os bilhetes para viagens noturnas ofereciam um desconto de 20% e, como éramos um trio, a economia foi considerável. A viagem, com uma escala de quase 2h, no Galeão, no Rio de Janeiro, durou 3h30. Desembarcamos em Salvador por volta das 7h30 da manhã. No aeroporto 2 de Julho (atual Carlos Eduardo Magalhães), nos aguardava o gerente de esportes do Santo André, Roberto Nasser Bartoli, o Turcão, que hoje ocupa o cargo de diretor do Departamento de Lazer da Prefeitura de Santo André. Ao grupo, juntou-se o jornalista Divanei Guazzeli, enviado especial do Jornal Diário do Grande ABC, que faria a cobertura do jogo. Aboletados num táxi reservado pelo Turcão percorremos, num calor de quase 40 graus, a interminável avenida beira-mar de Salvador até a Praça Castro Alves, onde desembarcamos em uma garagem de ônibus da empresa Catuense, de propriedade do empresário Antônio Pena, magnata do transporte coletivo na Bahia e presidente da Catuense, time que o Santo André enfrentou em Alagoinhas.
Num ônibus meia-boca embarcamos eu, o Rolando e o Divanei. O Turcão e o Jurandir Martins, mais espertos enfrentaram de carro os 100 quilômetros da precária estrada que liga Salvador a Alagoinhas. Pior que a rodovia foi a via sacra no ônibus. Como era um sábado, tipo 12h, o coletivo parava onde havia alguém para embarcar (uma árvore ou um raro poste faziam a vez de uma parada convencional de ônibus). Crianças, adolescentes, adultos, sacos de farinha, um cão, um porco, algumas galinhas e uma cabra completavam a, para nós, inusitada carga do coletivo. Um calor infernal. A capacidade de 60/80 pessoas do ônibus pulou para 100 ou mais. No percurso, apenas as cidades de Camaçari (pólo petroquímico baiano) e a pequena Catu, que não possuía estádio, dai a Catuense jogar no município vizinho.
Após quase 3h de viagem, ufa!, chegamos a Alagoinhas. O motorista estacionou o veículo numa casa cercada por árvores para todos dos lados (também pertencia ao Antônio Pena), mas não ficamos lá. Saímos com a bagagem a procura de hotel. Só havia um na cidade e estava reservado à delegação do Santo André. Nestas alturas os relógios marcavam 21h. Com um jeitinho e após a aprovação do presidente do Santo André (Lourival Passarelli) e do técnico (Jair Picerni), o gerente do hotel arranjou um quarto onde nos instalamos - Eu, Rolando, Jurandir e Divanei. O "cicerone" Turcão sumiu. No domingo pela manhã, depois do café (café? deixa pra lá), topo com Miguel de Oliveira, massagista do Santo André, hoje no Palmeiras, que convida: "Lavrado, vem comigo que preciso encontrar gelo e o hotel não tem". Juntos percorremos, a pé, quase toda Alagoinhas e nada de achar o bendito gelo para o Miguel e seus jogadores. Os termômetros marcavam 41 graus na cidade. Pavio curto e com cara de poucos amigos o massagista do Santo André blasfemava: “que diabo de lugar é este que nem gelo tem?". Eu fiquei na minha uma vez que, como o Miguel, eu estava ressabiado com Alagoinhas. Salvo pelo gongo, Miguel de Oliveira conseguiu duas panelas com gelo, fornecidas pelo dono de um boteco (tirou da sua geladeira), que se apiedou com a angústia de meu amigo. Antes de chegar ao hotel passamos por uma feirinha, sem nenhuma banca, com toalhas e lençóis esparramados pelo paralelepípedo de uma rua imunda e calorenta. Sobre esses panos estavam espalhados sacos com farinha, rapadura, carne de todo tipo, frutas, verduras e outros alimentos. Ao lado, porcos, cabras, patos e galinhas (vivos) expostos para venda. Com o sol a pino, o mau cheiro era insuportável.
Bem, tipo 12h30 nossa equipe, já na companhia do pessoal da Rádio ABC de Santo André, rumou para o estádio. Para as duas e únicas rádios que estavam naquela praça de esportes havia linha de transmissão, instalada pela TeleBahia, mas não tinha terminal para o repórter de campo, que na Bahia e no Rio de Janeiro são chamados de repórter de pista. Após algum entrevero com a inexperiente turma da telefônica baiana, o problema foi resolvido e a Diário e a ABC conseguiram cumprir com seu dever "cívico" de transmitir a partida, que terminou com a vitória do Santo André sobre a Catuense por 1 a 0, gol do meia Rotta.
Dois ônibus apanharam a delegação do Santo André e também nós, das duas rádios. Sem ninguém consultar se a gente queria ou não, rumaram para a mesma casa, tipo mansão, com piscina interna e cercada por muitas árvores. Ali residia o glorioso Antônio Pena, já conhecido neste relato. O magnata havia convidado (ou obrigado), a turma de São Paulo, jogadores, comissão técnica, dirigentes do Santo André e nós, da Imprensa, para um jantar em sua casa. E que jantar... Numa sala enorme foram dispostas três grandes mesas com toalhas impecavelmente brancas e sobre as quais aportavam os mais variados tipos de comida baiana. O anfitrião não economizou nos detalhes. Mulheres vestidas de baianas (sic) pajeavam os convidados. Pratos de porcelana legítima, copos de cristal para cada tipo de bebida, que variava na qualidade e sabor. Tudo perfeito, não fosse um pequeno detalhe, fatal para nós paulistas: não havia nenhum tipo de talher, nem cadeiras. Os convivas se serviam, acreditem, com as mãos e comiam em pé.

Já passava da meia noite quando o empresário Antonio Pena colocou todos novamente nos dois ônibus, determinando aos motoristas que nos deixassem no aeroporto em Salvador, onde de madrugada retornamos, com escalas em Belo Horizonte e no Rio, a São Paulo, sem nenhum problema. Em Congonhas, claro, lá estava o nosso Lampião, motorista da rádio, sempre sorridente nos aguardando com a clássica pergunta: "e aí, tudo bem na viagem?" E a resposta de sempre, para encurtar conversa: "tudo Lampião, tudo."
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Oswaldo Lavrado - jornalista/radialista - trabalhou no Diário do Grande ABC, (rádio e jornal), e comandou a equipe de esportes da Rádio Diário por 10 anos. Atualmente é editor do semanário Folha do ABC.
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