quarta-feira, 29 de abril de 2009

PRESENTE INESQUECÍVEL DE ANIVERSÁRIO

Oswaldo Lavrado

Baltazar,
“Cabecinha de Ouro”

Se o futebol quisesse dar um presente ao meu pai, bastava que lhe desse um domingo inteirinho só de gols de Baltazar, o “Cabecinha de Ouro”. Papai, corintiano roxo, sempre sonhava de olhos abertos. Imaginava um estádio embandeirado, ele na multidão, todo mundo cantando e pulando pela gloria do artilheiro inesquecível do Corinthians. Eu e meus quatro irmãos somos todos nascidos em São Caetano do Sul, no ABC, onde meu pai, Santiago Lavrado, chegou quanto tinha uns 4 ou 5 anos de idade, vindo de Araras, Interior de São Paulo. "Sêo" Santiago viveu, trabalhou, casou com minha mãe (dona Adélia, uma portuguesa de Trás-os-Montes), criou os filhos em São Caetano e ali morreu em 1991, aos 77 anos. Está sepultada no Cemitério das Lágrimas, no Bairro Mauá. Eu e meu único irmão, por influência de nosso pai, corintiano de vinte costados, também sempre torcemos pelo Corinthians. O velho Santiago foi, na juventude, apenas um razoável goleiro de times varzeanos de São Caetano do Sul.
Meu pai, como escrevi no início, era fã de carteirinha do centroavante Baltazar, que jogava no time mais lembrado da história do Corinthians: Gilmar, Olavo e Homero; Idário, Goiano e Roberto; Cláudio, Luizinho, Baltazar, Carbone e Simão - campeão do IV Centenário (1954) e que voltou a ser campeão somente 22 anos depois (1977) contra a Ponte Preta. Baltazar, nos anos 50/60, era um dos mais badalados atletas do Brasil. Emérito cabeceador, ganhou o apelido de “Cabecinha de Ouro” e teve várias músicas com seu nome, inclusive um filme. Depois de Baltazar, em popularidade, só mesmo o fenômeno Pelé. Em janeiro de 55, após ganhar o Campeonato Paulista de 54 - não havia outra competição a não ser o Paulista - o Corinthians veio fazer um amistoso em São Caetano, contra o São Bento, time profissional da cidade e originário de uma fusão entre o São Caetano e o Comercial, da Capital. O jogo foi no Estádio Lauro Gomes de Almeida, hoje Anacleto Campanella. O Corinthians trouxe todos os jogadores da escalação acima lembrada, com Baltazar, é claro. Meu pai quase não dormiu na semana que antecedeu o amistoso. No domingo, dia do jogo, "Sêo" Santiago dispensou o almoço. Arranjou uns trocados, pegou no meu braço e me carregou para o "Lauro Gomes" para ver o Mosqueteiro de Baltazar. Morávamos na, então, Vila Gerti, hoje Bairro Nova Gerti, não muito longe do estádio e fomos a pé, até porque não havia ônibus no trajeto e nem todos possuíam carro próprio. Nossa família estava inserida nesse contexto. Foi a primeira vez que eu coloquei os pés num estádio para ver um time profissional e logo o meu “coringão”. Vimos o jogo espremidos nas arquibancadas de madeira do precário "Lauro Gomes" e a vitória de 5 a 2 do Corinthians, com três gols do “Cabecinha de Ouro”. Meu velho estava eufórico por ter visto Baltazar bem próximo, cerca de 100 metros.O tempo passou e em 72, já repórter do Diário do Grande ABC, fui incumbido pelo editor de esportes, Josué Dias, como setorista, cobrir o dia-a-dia do Saad, time profissional de São Caetano e que disputou a Primeira Divisão de São Paulo. No começo de 1973, o Saad demitiu o treinador, ação rotineira já naquele tempo, e contratou Baltazar para dirigir o time. De chuteiras penduradas há alguns anos, o “Cabecinha de Ouro”, antes de aportar no Saad, havia sido técnico de equipes sem muita expressão e até comandado o time de futebol da, hoje extinta, Penitenciária do Carandiru. Bem, agora Baltazar estava no Saad de São Caetano, clube que eu fazia a cobertura cotidiana para o Diário. Em apenas algumas semanas ficamos amigos, além do relacionamento treinador/jornalista. Desse respeito mútuo, criou-se um laço forte entre ambos. A gente se tratava de "xará", até porque o nome de Baltazar era Oswaldo Silva. Oswaldo, com w, como eu. Uns dois meses depois, eu estava no carro do Diário - o motorista era o Barbosa, velho conhecido deste blog e o fotógrafo, Mário Otsubo, o "japonês" - rumo ao treino do Saad e meu imaginário bolou algo que marcaria para sempre algumas vidas. Era julho, mês de aniversário de meu pai. "Pô, por que não pensei nisso antes? Vou dar ao velho o melhor presente de sua vida". Combinei com Baltazar que fizesse uma visita à casa de meus pais, que moravam na Rua José Roberto, próximo onde hoje é o Fórum de São Caetano. O imóvel ainda está lá e pertence a nossa família. Foi de surpresa. Após um treino do Saad, tipo 6 horas da tarde, aportei na casa dos velhos com aquele "negão", bigodudo, alguns fios de cabelos grisalhos, sisudo e corpanzil de ex-atleta. Meu pai nos recebeu sem entender bem o que se tratava e quem era o cara que estava ao meu lado e invadindo a casa: "Filho, quem é esse senhor?" Resmungou "Sêo" Santiago.
- Viemos trazer nosso abraço pelo seu aniversário, disse eu.
- Pai, esse é o Baltazar, o “Cabecinha de Ouro” que o senhor tantas vezes amaldiçoou por ter perdido gols importantes para o Corinthians e abençoou pelos outros tantos que marcou nas vitórias do time. Seu ídolo de algumas décadas, disse eu. Faltou pouco para o "Sêo" Santiago não sofrer um piripaque. Abraçou o velho ídolo, sorriu feliz, sem disfarçar a emoção. Algumas lágrimas teimosamente desceram pelo seu rosto. Ele tentou, mas não conseguia esconde-las. Nem ele, nem Baltazar, nem eu.
Uma vez por mês, até deixar o Saad (quase dois anos depois), o "xará", passava na humilde residência da Rua José Roberto para uma pitada de prosa com seu velho fã. Baltazar e o "Sêo" Santiago já partiram, mas, com certeza, devem estar relembrando e vibrando com os gols marcados nos campos deste mundo pelo "imortal" “Cabecinha de Ouro”.

*Oswaldo Lavrado - jornalista e radialista - trabalhou no Diário do Grande ABC, rádio e jornal, e comandou a equipe de esportes da Rádio Diário. Atualmente é editor do semanário Folha do ABC.