Uma volta à Imprensa de Franca: era 1934

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Uma das diferenças entre o documento oficial e as notícias de um jornal é que o oficial traz a data, os nomes corretos dos envolvidos, a versão jurídica e administrativa do acontecimento, tudo isso numa linguagem em que os que o assinam não podem se contradizer e precisam sempre se resguardar – daí porque aquela linguagem burocrática, formal, repetitiva e sem graça. Já o jornal focaliza o mesmo assunto, dá a notícia com vida, com os detalhes que um jornalista - e só ele - consegue pinçar, sintetizar e passar a limpo. A boa notícia é gostosa de ler, segura o leitor, é lida, relida, recortada e guardada. Um não vive sem o outro: o documento oficial e o jornal. Nos dois casos é preciso saber ler o que lhe é apresentado.Toda essa introdução - ou nariz-de-cera, na linguagem jornalística - é para apresentar este número isolado do jornal AEC (nº 2, ano I) editado em Franca em 12 de abril de 1934.
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HISTÓRICO
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Alguém enviou o número isolado do AEC ao farmacêutico Pedro Fiorini, de Santa Rita do Passa Quatro, e por um motivo que não sei explicar o exemplar caiu nas mãos de um amigo da juventude chamado Márcio Pelanchi, engenheiro da Brastemp, residente no Bairro Jordanópolis, em São Bernardo do Campo, e que depois se mudou para o Bairro de Santana, na Zona Norte de São Paulo, onde o visitei e depois perdemos contato.
Márcio e Maria Inês, sua jovem esposa, acompanhava o nosso trabalho jornalístico e sabia que eu gostava dessas coisas da Memória, daí terem me repassado o jornal. Isso faz uns 30 anos. Se interessar, repasso o exemplar com muito prazer ao Arquivo Histórico Capitão Hipólito Antonio Pinheiro, da Prefeitura de Franca, via Blog do Edward de Souza.
Márcio e Maria Inês, sua jovem esposa, acompanhava o nosso trabalho jornalístico e sabia que eu gostava dessas coisas da Memória, daí terem me repassado o jornal. Isso faz uns 30 anos. Se interessar, repasso o exemplar com muito prazer ao Arquivo Histórico Capitão Hipólito Antonio Pinheiro, da Prefeitura de Franca, via Blog do Edward de Souza.
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MEMÓRIA
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MEMÓRIA
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Mas, aqui está o jornal: formato quase tablóide (28 cm x 38 cm), quatro páginas, com artigos, poesias, notas sociais e esportivas, deliciosos anúncios e uma linda seção de Memória, assinada pelo seu redator, José Chiachiri, cujo título, no alto da primeira página, destaca "Chico Amor", simplesmente.
E lá vai Chiachiri escrevendo: "Para além do rio Fartura, num grotão soturno e cavo, rodeada de imensa mataria e de esguios coqueirais, fica a palhoça de Chico Amor. Como se fosse um tonel, que tem por cobertura o céu, a lua e as estrelas, a pobre palhoça fica noites a fio, durante horas inteiras, a ouvir os dolorosos gemidos, repassados de saudosas recordações, que o solitário caboclo dedilha na sua viola querida. Essa humilde palhoça é a única recordação que resta a Chico Amor. É toda o seu passado".
Não é bonito? A crônica prossegue, neste mesmo tom gostoso. Fica a sugestão para que seja republicada na íntegra pelo Blog do Edward.
E lá vai Chiachiri escrevendo: "Para além do rio Fartura, num grotão soturno e cavo, rodeada de imensa mataria e de esguios coqueirais, fica a palhoça de Chico Amor. Como se fosse um tonel, que tem por cobertura o céu, a lua e as estrelas, a pobre palhoça fica noites a fio, durante horas inteiras, a ouvir os dolorosos gemidos, repassados de saudosas recordações, que o solitário caboclo dedilha na sua viola querida. Essa humilde palhoça é a única recordação que resta a Chico Amor. É toda o seu passado".
Não é bonito? A crônica prossegue, neste mesmo tom gostoso. Fica a sugestão para que seja republicada na íntegra pelo Blog do Edward.
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GUERRA E REVOLUÇÃO
GUERRA E REVOLUÇÃO
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Era 1934, e o AEC focaliza, ainda na primeira página, o que era uma memória contemporânea: a morte, em 1932 - na Revolução Constitucionalista - de Ângelo Macatti, sepultado em São José do Rio Pardo. Uma morte perversa, na Ilha das Flores, por fios de arames eletrificados.
A notícia não deixa claro se o soldado morto era de Franca, mas traz o nome de Pedro Fiorini, farmacêutico, filho de Vargem Grande, a quem o exemplar do AEC foi encaminhado. Fiorini ofereceu ao jornal a canção "Ilha das Flores", cuja letra é transcrita na primeira página do jornal. Canção oferecida ao soldado morto e que era entoada no presídio.
No mesmo artigo, o nome de Machado Sant’Anna, que no número 1 do AEC publicou o artigo "A sepultura 91", que recordava a visita feita ao túmulo de Ângelo Macatti, em São José do Rio Pardo.
Um terceiro artigo de primeira página do jornal já previa a II Guerra Mundial. Justino d’Avellar escreve: "O mundo todo, nestes dias em que vivemos, cheira a pólvora e a gás asfixiante. Fala-se em guerra por toda a parte".
Era 1934, e o AEC focaliza, ainda na primeira página, o que era uma memória contemporânea: a morte, em 1932 - na Revolução Constitucionalista - de Ângelo Macatti, sepultado em São José do Rio Pardo. Uma morte perversa, na Ilha das Flores, por fios de arames eletrificados.
A notícia não deixa claro se o soldado morto era de Franca, mas traz o nome de Pedro Fiorini, farmacêutico, filho de Vargem Grande, a quem o exemplar do AEC foi encaminhado. Fiorini ofereceu ao jornal a canção "Ilha das Flores", cuja letra é transcrita na primeira página do jornal. Canção oferecida ao soldado morto e que era entoada no presídio.
No mesmo artigo, o nome de Machado Sant’Anna, que no número 1 do AEC publicou o artigo "A sepultura 91", que recordava a visita feita ao túmulo de Ângelo Macatti, em São José do Rio Pardo.
Um terceiro artigo de primeira página do jornal já previa a II Guerra Mundial. Justino d’Avellar escreve: "O mundo todo, nestes dias em que vivemos, cheira a pólvora e a gás asfixiante. Fala-se em guerra por toda a parte".
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BAILES A ESCOLHER
BAILES A ESCOLHER
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Viramos a página. E vamos anotando novos artigos. Uma notícia do Grêmio Cívico e Literário Ruy Barbosa e a comissão que tentava o reativar: Xisto Guzzi, Aurélio Luiz Bettarelo, Victorio Constantino, Joaquim Molina e Aníbal Moreira França.
Dois bailes estavam programados e anunciados: o do Espanha FC, na sede do Centro Espanhol, cuja madrinha era a senhorita Maria Morales; e o do Centro Recreativo Amor à Mocidade, em comemoração ao primeiro aniversário do jazz do clube.
Na página 3, o futebol: Francana 4, Uberaba Esporte 2, no campo adversário - com enviado especial e tudo. Ricardo Pinho e Ricardo Pucci chefiaram a delegação francana, que levou a campo Ié, Felipe e Melani, Alemão, Waldomiro e Juca, Durvalino, Carlito, Walter, Lopes e Felício. Três gols em apenas sete minutos.
Viramos a página. E vamos anotando novos artigos. Uma notícia do Grêmio Cívico e Literário Ruy Barbosa e a comissão que tentava o reativar: Xisto Guzzi, Aurélio Luiz Bettarelo, Victorio Constantino, Joaquim Molina e Aníbal Moreira França.
Dois bailes estavam programados e anunciados: o do Espanha FC, na sede do Centro Espanhol, cuja madrinha era a senhorita Maria Morales; e o do Centro Recreativo Amor à Mocidade, em comemoração ao primeiro aniversário do jazz do clube.
Na página 3, o futebol: Francana 4, Uberaba Esporte 2, no campo adversário - com enviado especial e tudo. Ricardo Pinho e Ricardo Pucci chefiaram a delegação francana, que levou a campo Ié, Felipe e Melani, Alemão, Waldomiro e Juca, Durvalino, Carlito, Walter, Lopes e Felício. Três gols em apenas sete minutos.
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DE SANTO ANDRÉ A FRANCA
DE SANTO ANDRÉ A FRANCA
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Na última página, anúncios, com um destaque: "No uso do álcool-motor Quito consiste sua demonstração de patriotismo; 50% mais barato que a gasolina. Andrade & Cilurzo, distribuidores das Usinas Junqueira".
(O álcool como combustível, anos, décadas antes do Pró-Álcool e da transformação do Estado de São Paulo num imenso canavial).
Mas o que nos interessa são os anúncios de 1934 na imprensa de Franca. Entre os demais que anunciavam estavam: a Leiteria Polar, o doceiro e pipoqueiro Lázaro Gorga, o cirurgião-dentista Luiz Pimentel, o Salão Paulista (do cabeleireiro Nicola), a Sorveteria Francana, a Alfaiataria Aparecida (de Heitor Medeia), os impressos da tipografia do "Comércio de Franca", Dr. Valeriano Gomes do Nascimento (médico).
(O álcool como combustível, anos, décadas antes do Pró-Álcool e da transformação do Estado de São Paulo num imenso canavial).
Mas o que nos interessa são os anúncios de 1934 na imprensa de Franca. Entre os demais que anunciavam estavam: a Leiteria Polar, o doceiro e pipoqueiro Lázaro Gorga, o cirurgião-dentista Luiz Pimentel, o Salão Paulista (do cabeleireiro Nicola), a Sorveteria Francana, a Alfaiataria Aparecida (de Heitor Medeia), os impressos da tipografia do "Comércio de Franca", Dr. Valeriano Gomes do Nascimento (médico).
Havia uma doce rivalidade: Café Central (de David Oliveira, “o melhor café de Franca”, estabelecido na Praça Barão da Franca, 1165) e seu vizinho Café Globo, da mesma praça, nº 1195: “Ora! Todo mundo já está ciente de que o café e os pasteis mais saborosos são os do Café Globo, a nossa casa”.
Uma ligação com o Grande ABC? O anúncio de Castro Alarcon Fernandes, "o único representante dos afamadíssimos 'Adubos Químicos', de Fernando Hachrat e Cia". Sabem onde ficava a fábrica de Fernando Hachrat? Em Utinga, Santo André.
O jornal AEC tinha o patrocínio da Associação dos Empregados no Comércio de Franca e no seu logotipo de primeira página trazia os nomes de J. C. Oliveira (diretor), J. Chiachiri (redator) e G. Dias (secretário).
Uma ligação com o Grande ABC? O anúncio de Castro Alarcon Fernandes, "o único representante dos afamadíssimos 'Adubos Químicos', de Fernando Hachrat e Cia". Sabem onde ficava a fábrica de Fernando Hachrat? Em Utinga, Santo André.
O jornal AEC tinha o patrocínio da Associação dos Empregados no Comércio de Franca e no seu logotipo de primeira página trazia os nomes de J. C. Oliveira (diretor), J. Chiachiri (redator) e G. Dias (secretário).
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EDWARD DE SOUZA RESPONDE MEU E-MAIL
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Chiachiri, de pai para filho...
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Quando enviei um e-mail contando detalhes ao Edward de Souza sobre esse jornal, ele me pediu que escrevesse toda a história para o blog. O e-mail resposta que Edward me enviou completa a história desse tradicional clube de Franca, acompanhem na íntegra:
“Meu Deus! Este jornal é uma relíquia, Ademir. O Chiachiri é o responsável pelo Museu Histórico de Franca e outro historiador da cidade. É o nosso Ademir Medici daqui. Perdeu a visão depois dos 30 anos, mas tem um bom humor de deixar qualquer um de queixo caído. Espera aí. Vamos corrigir tudo, caro Ademir. Pela data do jornal, o Chiachiri é o pai desse meu amigo deficiente visual, que também dirigia o Museu Histórico de Franca, já falecido. Sobre os demais nomes, não posso precisar quem sejam. Até pelo ano do jornal, concorda?
Olha o detalhe. Esse clube, a AEC, foi o mais tradicional da cidade. Fica no centro de Franca, a quatro quarteirões da casa de meus pais. Era o ponto de encontro da juventude dos meus tempos, nos anos 60 e frequentado pela nata da cidade. Problemas financeiros, no entanto, decretaram o fim de todas as atividades nesse enorme prédio de um quarteirão, com dois andares, sendo o térreo restaurante e o superior salão de bailes. Está à venda para pagar dívidas, de acordo com notícia publicada semanas atrás pelo Jornal Comércio da Franca. Outro problema. Essa informação não é oficial e ainda precisa ser confirmada junto ao Corpo de Bombeiros de Franca, mas a estrutura do prédio está comprometida, é o que se comenta na cidade. Ainda não há informações sobre o preço exato da venda desse prédio, onde muitas gerações de francanos se divertiram nos bailes carnavalescos tradicionais e ao som de orquestras famosas, como Silvio Mazzuca e outras. Há outro clube social ligado a AEC. Sua sede de campo foi construída bem depois. O clube se chama "Castelinho". A venda da AEC (Associação dos Empregados no Comércio) seria para pagar dívidas deste clube de campo, que há muitos anos não está “bem das pernas”.
Edward de Souza
“Meu Deus! Este jornal é uma relíquia, Ademir. O Chiachiri é o responsável pelo Museu Histórico de Franca e outro historiador da cidade. É o nosso Ademir Medici daqui. Perdeu a visão depois dos 30 anos, mas tem um bom humor de deixar qualquer um de queixo caído. Espera aí. Vamos corrigir tudo, caro Ademir. Pela data do jornal, o Chiachiri é o pai desse meu amigo deficiente visual, que também dirigia o Museu Histórico de Franca, já falecido. Sobre os demais nomes, não posso precisar quem sejam. Até pelo ano do jornal, concorda?
Olha o detalhe. Esse clube, a AEC, foi o mais tradicional da cidade. Fica no centro de Franca, a quatro quarteirões da casa de meus pais. Era o ponto de encontro da juventude dos meus tempos, nos anos 60 e frequentado pela nata da cidade. Problemas financeiros, no entanto, decretaram o fim de todas as atividades nesse enorme prédio de um quarteirão, com dois andares, sendo o térreo restaurante e o superior salão de bailes. Está à venda para pagar dívidas, de acordo com notícia publicada semanas atrás pelo Jornal Comércio da Franca. Outro problema. Essa informação não é oficial e ainda precisa ser confirmada junto ao Corpo de Bombeiros de Franca, mas a estrutura do prédio está comprometida, é o que se comenta na cidade. Ainda não há informações sobre o preço exato da venda desse prédio, onde muitas gerações de francanos se divertiram nos bailes carnavalescos tradicionais e ao som de orquestras famosas, como Silvio Mazzuca e outras. Há outro clube social ligado a AEC. Sua sede de campo foi construída bem depois. O clube se chama "Castelinho". A venda da AEC (Associação dos Empregados no Comércio) seria para pagar dívidas deste clube de campo, que há muitos anos não está “bem das pernas”.
Edward de Souza
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*Ademir Medici é jornalista e escritor, formado pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Trabalha na imprensa do Grande ABC desde 1968 e especializou-se na área de resgate e reconstituição da memória. Membro titular do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Possui um acervo de 32 livros escritos, sendo 24 publicados e oito inéditos. Ademir também ganhou, em 1976, o Prêmio Esso de Jornalismo, em parceria com o jornalista Édison Motta, pela série “Grande ABC: A metamorfose da industrialização”. Atua no jornal Diário do Grande ABC desde 1972. Foi repórter especial, editor de Cidades e Política e secretário de Redação. Atualmente é responsável pela coluna Memória, uma das mais lidas do jornal e do quadro "MEMÓRIA", no programa "ABCD Maior em Revista".
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