quarta-feira, 4 de agosto de 2010



Em casa, depois de alguns dias de amnésia causada pelos medicamentos na tentativa de conter a infecção, minha mulher me diz que o Ricardo Hernandes esteve me visitando no hospital. Eu sequer me lembrava dessa visita, mas agora recordo da crônica que escrevi falando dele e de sua doença. Saiu publicada em um jornal de Bálsamo e o Ricardo a divulgou pela internet. A crônica, como publicada no original:

Numa manhã, durante o velório de um fotógrafo no Cemitério do Camilópolis, em Santo André. Vi meu amigo Ricardo Hernandes – então assessor de Imprensa da General Motors do Brasil - levando à boca uma pequena garrafa com água mineral e dando um gole, curto e rápido. Como a cena voltava a se repetir quase que continuamente, ousei perguntar o porquê daquele procedimento. Ele, com seu jeito professoral que conheço há quase meio século, explicou que passara por um tratamento de radioterapia e, em consequência, perdera a saliva e agora precisava “estar sempre molhando a goela” para não ficar com a garganta ressequida.

Confesso que, na hora, fiquei compadecido da situação em que se encontrava o meu amigo e cheguei inclusive a escrever uma crônica sobre o assunto, a qual lhe enviei via e-mail. Ficava imaginando como seria uma pessoa viver sem a saliva, uma manifestação tão natural do corpo humano que a gente sequer dá importância. Mal sabia eu que, não muito tempo depois, iria me submeter a tratamento similar de radioterapia e, assim como o bom Ricardo, teria secado as glândulas salivares. Tornei-me, também, um homem sem saliva, que os dicionaristas definem como “líquido transparente e insípido que serve para fluidificar os alimentos e facilitar a sua ingestão e digestão”.

Agora, desde que fiz o primeiro tratamento de radioterapia, sou outro que vive obrigado a carregar um pequeno recipiente com água para ir regando a garganta. Só que, em vez de um invólucro de plástico como o de Ricardo, optei por utilizar uma pequena garrafa de vidro que, nos meus velhos e sórdidos tempos, vinha carregada de bebida alcoólica. O uso dessa garrafinha, muito conhecida por ser vista em filmes norte-americanos e ser apetrecho comum de caubóis e executivos, continua me causando constrangimento e provocando cenas inusitadas.

Antes de recomeçar com a quimioterapia, caminhando por uma das ruas da cidade onde moro, sob um sol ardente, tirei do bolso a pequena garrafa e, depois de tomar um gole, soltei um ah! de satisfação. Nisto, uma senhora que passava ao lado, ao me ver bebendo, fez o sinal da cruz e balbuciou o secular Cruz Credo. De outra feita, encontrei um conhecido dos tempos em que bebia e, ele, ao ver a garrafinha no bolso da camisa, comentou: “Você continua o mesmo, hein, sempre prevenido”. E teve também aquele que, ao me encontrar pela manhã, disse, quase exclamando: “Bebendo vodca logo cedinho...”

É comum, ainda, que eu seja alvo de olhares críticos quando, em algum recinto fechado, ao perceber a garganta seca, sinta-me obrigado a tirar a garrafinha do bolso e sorver um pouco da água, mas que, à distância, parece cachaça, mais pura impossível. O problema se torna mais constante em razão das minhas atividades profissionais. Toda vez que vou entrevistar alguma pessoa sou obrigado a explicar que, por causa da radioterapia, fiquei sem saliva e preciso da água.

Um dos casos mais recentes ocorreu em Belo Horizonte. Cheguei para entrevistar um empresário e, na hora em que fui justificar a presença da garrafinha, ele, muito compreensivo, se adiantou: “não precisa falar nada, meu jovem. Eu também já fui um alcoólatra e sei que quando a gente chega nesse estágio é preciso estar sempre dando um golinho na maldita...”

Durante meu período de descanso, sem deixar de tomar os remédios contra dor, muitas vezes lembrava-me dos meus companheiros de quarto. Uma dessas era uma ascendente de japoneses. Otimista, vivia a sorrir e parecia brincar com o tumor corroendo o seu organismo. Gostava de contar estórias, principalmente as relacionadas com as suas viagens internacionais. Deveria pertencer a alguma família dotada de bons recursos econômicos e financeiros. Ela, dizia, já viajara praticamente os principais países do mundo. Depois dessa sessão de quimioterapia, fazia planos de ir para a Itália e conversava com o seu estômago: vê se não dá abrigo para as células cancerígenas desta vez, porque adoro comida italiana, divertia-se e o seu comportamento chegava a impressionar médicos e enfermeiros experientes. Lembrava-se de sua estada em Paris – foi obrigada a retornar devido ao agravamento da doença. Por essa razão, desta vez, pedia para o câncer deixá-la em paz na viagem à Itália.

Outro companheiro de quarto difícil de esquecer é o de um nordestino, homem forte, acostumado com serviço pesado, à espera de ser encaminhado ao Centro Cirúrgico e ser operado do estômago. Sua mulher, morena simpática, de traços fortes, o acompanhava. Quando ele foi levado do quarto, ela se ajoelhou e começou a rezar – para quem, desconheço. A situação se agravou, no entanto, quando trouxeram o seu marido de volta ao quarto, menos de uma hora depois de sua saída. Os médicos lhe disseram que a cirurgia fora suspensa devido à gravidade do caso e eles tentariam combater as células cancerígenas com o tratamento quimioterápico. O marido ainda entorpecido pela anestesia, os olhos fechados, permanecia inerte na cama. Ela chorava e voltara a rezar.

Há ainda o caso de um rapaz, alto, loiro, pouco mais de vinte anos, que sempre adormecia com um tampão nos olhos. A sua mãe não o deixava sequer um instante. Os médicos fizeram um exame e agora estavam examinando para verificar como se encontrava o seu estado de saúde. Ele era só alegria e fazia planos para voltar a andar de motocicleta e, se possível, retornar ao trabalho. O curioso era o seu endereço: morava no mesmo bairro onde eu residia, a dois quarteirões de distância. Ficamos de nos encontrar quando tivéssemos alta médica. Era um jovem amigo a acrescentar em minha vida, pensei. Engano. Pouco mais de duas semanas depois, informaram-me de sua morte. Eu, ainda esperançoso, prosseguia com o tratamento.

Permaneci como funcionário da Prefeitura de Santo André por quase três anos, de 1979 até o final de 1982, quando acabei demitido. O prefeito era o mesmo que me demitira a primeira vez, na década de 70: o meu padrinho de casamento Newton da Costa Brandão, duas vezes padrinho, duas vezes demissões. Nesse período, como praticamente não fazia nada, bebia em demasia pela manhã e dormia à tarde. Voltava à Prefeitura para marcar o cartão de ponto e tornava a beber. A Ilca jamais interferiu em minha vida e, por sua natureza, nada comentava e aceitava continuar vivendo com aquele homem em declínio moral e profissionalmente.

Um dos pontos positivos desses anos, acredito, deve ter sido o lançamento da minha novela Adeus ao Continente, lançada em 1982, em um bar noturno. Vários amigos compareceram para prestigiar o lançamento. A jornalista e crítica de Literatura Virginia Pezzollo publicou uma resenha no Diário do Grande ABC, com a foto da capa do livro – os símbolos sexuais feminino e masculino girando com o universo. E Virginia Pezzollo quem escreve: "José Marqueiz que pela sua trajetória no jornalismo recebeu o Prêmio Esso Nacional, começa a se firmar na literatura, campo onde incursiona com alguma habilidade. Após Ilha Humana, premiado pela Prefeitura de Manaus e Villas Boas e os Índios, volta às livrarias com novo título: Adeus ao Continente, embora o autor o apresente como romance, é uma novela. A trama, quase isolada, firma-se entre dois e três personagens; o que não diminui, em absoluto, o mérito do trabalho. Talvez, apenas, altere sua classificação literária, muito embora os tênues limites entre ambos os gêneros sejam por demais conhecidos".

Virginia continua: "dono de prosa ágil, de agudo senso de observação das contradições do ser humano, José Marqueiz relata o difícil percurso de alguém em busca de sua própria identidade de reconstrução anterior que o leva a dar o seu Adeus ao Continente, quando procura encontrar-se na solidão de uma ilha. Achar uma verdade que se encontra muito mais entre os que o cercam, o ambiente social que rejeita ou discrimina os que não se curvam nem se amoldam aos padrões estabelecidos".

Após comentar o desenrolar da narrativa, a jornalista encerra: “a própria personagem, angustiada e aflita por sua condição de homossexual que acompanha os crescentes sinais de decadência física, ganha do autor passagem onde se evidencia uma espécie de autopunição pelo fato de não ser exatamente igual aos demais. Chega a ser compreensível certos senões moralísticos num terreno onde é enorme a soma de ideias pré-concebidas. Isso não impede que Adeus ao Continente seja de uma leitura atraente e agradável, pois, acima de tudo, José Marqueiz conta uma história que o leitor acompanha com interesse e facilidade. Até ao fim de certa forma inusitado, onde o autor, propositadamente, joga a trama numa espécie de vácuo, do qual o leitor é chamado a participar, a colaborar na transformação de Ricardo num novo homem, como ele afirma”.

Apesar da crítica favorável, não me senti entusiasmado a continuar escrevendo, praticando literatura, como se diz. Só dez anos mais tarde é que iria escrever um novo livro. Saindo da Prefeitura, fiquei quase um ano desempregado. Bebia, bebia, acelerava o declínio profissional. Mesmo nessa precária situação, consegui de um advogado amigo abertura de processo para conseguir o divórcio e estar legalmente apto a me casar de novo. O que veio ocorrer em 1984. Uma semana após o casamento no cartório civil – divorciado não pode casar no religioso pelos preceitos da Igreja Católica Apostólica Romana – me encontrei com o Fausto Polesi, então diretor de redação do Diário do Grande ABC. Perguntou como eu me estava e eu, respondi, secamente, me encontrar desempregado, sem ter dinheiro ao menos para pagar o aluguel da nova casa onde fui morar. No outro dia, voltava a trabalhar no Diário do Grande ABC.
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Na próxima quarta-feira, o décimo sétimo capítulo de "Memória Terminal", do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50. (Edward de Souza/ Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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As leitoras DANIELA, do Rio de Janeiro (RJ) e CAROL, da Metodista, de São Bernardo do Campo (SP), foram as ganhadoras do livro "Villas Boas e os Índios", de José Marqueiz, sorteados na semana passada e já receberam seus exemplares. A Ilca Marqueiz enviou outros dois livros, que serão sorteados no próximo capítulo.
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