sexta-feira, 30 de julho de 2010


O BAÚ


Na frente da penteadeira ela podia ver o quarto.

Os lençóis de linho meio rotos e ainda do enxoval haviam sido atirados para o lado em vã tentativa de refresco, pois o calor do sol do meio da manhã esquentava demais o aposento.

Passou as mãos pelos cabelos e foi surpreendida, num repente, pelo passado.

De olhos fechados pretendeu recolher o imaginário feito de campos verdes com cobertura fofa entremeada de florezinhas amarelas. Surpreendeu-se menina, rindo de prazer ao colher os minúsculos ramalhetes que usava para decorar sua cabeça. Tudo para ela, em seu mundo, eram campos floridos.

Dividiu uma vez mais as madeixas e viu-se jovem, morando ainda na fazenda, encantada com aquelas paisagens, já com mostras de querer explorar não só essa sensação de liberdade, mas o misto de curiosidade e timidez, toda a vez que trocava olhares com um dos jovens empregados.

Um punhado a mais de emoções apanhadas em sua mente, ainda com os olhos fechados, ao se lembrar que ele lhe dera um pequeno buquê daquelas flores amarelas, para impressioná-la e mostrar que desde muito a observava.

Em silêncio, os dois conversavam através de olhares e desenvolveram tal aptidão de troca de sentimentos que o futuro já estava, assim, determinado. Acabariam juntos, embora as famílias resistissem ao enlace. Em silêncio, trançaram planos secretos em um dialeto próprio, feito de olhares e piscadelas. Aquele lençol era a testemunha silenciosa que a forçava a se recordar de tudo.

Uma mecha de saudades foi juntada, embora atravessada pela dor da perda súbita do companheiro. Seus devaneios bem vividos tentavam reunir o passado, lembrança que, volta e meia, a surpreendia e que ela fazia questão de conservar entrelaçada, como exercício para evitar definitivamente sua perda e, por isso, seu baú que descansava embaixo da janela do quarto foi arrumado com o que fora sua existência, organizada como uma longa cabeleira recém penteada.

As preciosidades conservadas ali por admiração acabaram enfurnadas. Levantou a tampa e, por baixo de tudo, viu o ramalhete de flores secas. Lembrou-se da mãe bordando o lençol de linho de seu enxoval, depois imaginou sentir o delicado roçar da grama verde em suas pernas e viu a cena de entrega daquelas flores, ora tingidas de marrom pelo tempo. Só o laço, tirado da roupinha do primeiro filho, ficara conservado.

Queria prender tudo aquilo, todo aquele seu tesouro e, para que o entrelaçamento de anos de felicidade não se desfizesse em longos fios desordenados, fechou o baú! Ao olhar suas mãos viu-se ainda segurando as flores secas, o início e o fim de todo o seu trançado de memórias.

A distração a fez selar o destino do buquê, através das prestimosas mãos da empregada.

*SILVANA BONI DE SOUZA é farmacêutica bioquímica, especialista em Homeopatia. Escritora de contos e crônicas, desde 2000 participa de projetos dinâmicos como estes dois conhecidos e já consagrados: http://www.vivasp.com/; http://www.carmenrochacontos.pro.br/, além do blog: http://www.deshortsnasiberia.com.br/, de sua autoria.