sábado, 27 de junho de 2009

PERERECA BUROCRÁTICA
NA ESTRADA
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GUIDO FIDELIS
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Eis que de repente, para espanto geral, surge no meio da estrada em construção, como se fosse um fantasma saído das profundezas infernais, uma solitária perereca. Os trabalhadores encarregados da obra de construção da rodovia destinada a facilitar o escoamento da produção agroindustrial e o fluxo de turistas entre Brasil e Argentina, ficam assombrados com a súbita aparição.
Paralisados os serviços, renomados técnicos são convocados para solucionar o complexo problema. Mestres, doutores e especialistas em questões ambientais promovem reuniões, realizam simpósios, debruçam-se sobre a misteriosa origem da perereca.
Após muitos e muitos demorados debates concluem que não se trata de alienígena, provindo de um planeta perdido no universo, desembarcado de um objeto voador não identificado, apesar do pequeno porte e de possuir dedos terminados em ventosa, além de membrana elástica.
A fim de dirimir dúvidas e possibilitar o fim do terrível impasse, chegam intérpretes e investigadores, convocados de todas as partes do mundo. Interrogado com técnicas modernas de investigação, o anfíbio anuro, da família Hylidae, não responde às perguntas que lhe são dirigidas em inglês, francês e espanhol. Talvez seja uma perigosa perereca espiã, chegada da Rússia, da China ou do Paquistão com a missão de verificar nosso programa nuclear.
O tempo flui sem que se chegue a uma conclusão. Dirigentes de órgãos governamentais entram na discussão, bem como representantes de organizações não governamentais que defendem a preservação da flora e da fauna e que sonham com uma volta ao passado, quando bastava uma trilha para caminhar à pé ou montado num vistoso cavalo.
Sob sol e chuva os trabalhadores aguardam ordens, muitos são demitidos para diminuir custos operacionais. Máquinas enferrujam ao longo dos canteiros, trechos concluídos sofrem desgaste, deterioram, precisam ser recompostos. Prejuízos se acumulam diante da longa paralisação imposta pela burocracia sem limites.
Milhares de pesquisas são realizadas com a finalidade de descobrir se a perereca pertence a algum ramo em extinção e se deriva de alguma sub-família brasileira ou argentina, já que ela se colocou, como obstáculo, na rodovia de ligação entre os dois países, obrigando os trabalhadores a recuarem como se fossem militares que batem em retirada diante da iminente vitória inimiga na batalha que se trava.
Muitos tratados são escritos, centenas de artigos merecem publicação em revistas especializadas de universidades. O enigma persiste. Decorridos sete meses, o veredicto final é dado, uma sentença esclarecedora: a perereca não corre risco de extinção, pode ser removida para o seu habitat.
Inicia-se, então, nova etapa de reuniões para decidir o tipo de remoção mais indicado. Uma carruagem real puxada por belos animais? Um recipiente de ouro para oferecer-lhe conforto de deputado?
Súbito, um assessor do assessor, olhos lacrimejantes, aproxima-se e pede aparte. Diz, com voz embargada: “Trago uma triste notícia para a comunidade científica. Apesar de todos os cuidados, a perereca morreu. Quer que providencie um enterro de luxo? Antes, temos de verificar o impacto ambiental da abertura de uma sepultura na mata. Vamos debater a questão.”
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*Guido Fidelis, jornalista, escritor cosmopolita, sensato, pé no chão, também advogado é outro dromedário da imprensa paulista. Ex-Última Hora, Diário do Grande ABC, A Nação e A Gazeta, sua pulsante literatura deixa pouca dúvida a respeito de suas preferências: drama policial com um aroma decididamente neonaturalista. Realmente, sua floresta urbana São Paulo é, mais frequentemente do que não, comprimida em um gênero ainda considerado opressivo. Guido Fidelis tem mais de uma dúzia de livros publicados. A última obra de Fidelis, Corredeiras do Tempo (Rapids of Time), mostra uma propensão marcante para a abstração acima da ação. Ao invés de policiais e ladrões, o leitor se encontra imerso em atmosferas densas caracterizadas por uma forte ênfase no simbolismo. No final, a narrativa filosófica de Guido Fidelis chega através de curtas-metragens, ricos em lirismo e um prazer para ler.
Visite o blog de Guido Fidelis: http://guifidel.blogspot.com/
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