quarta-feira, 1 de abril de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

INÉDITO
PARTE XV
*
SÉRIE
"TRAPALHADAS DE UM FOCA"

CAPÍTULO II
*
A FOICE DOS MEUS HORRORES
Edward de Souza

Lembro com uma riqueza de detalhes o primeiro dia em que eu fui cobrir uma matéria policial. Foi na metade dos anos 60. Eu tinha apenas 17 anos e já trabalhava como locutor na Rádio Difusora de Franca e de quebra escrevia como “free” para um pequeno jornal semanal da cidade, de nome “O Eco”, onde defendia uns trocados. Certo dia ligaram para a redação da rádio, informando que um crime bárbaro tinha ocorrido numa fazenda. Um lavrador enciumado matou a esposa a golpes de foice. Um dos golpes arrancou a cabeça da infeliz. O gerente da rádio, Luiz Carlos Facury, vendo que meu programa havia terminado, pediu para que eu corresse a essa fazenda, perto de Franca, para trazer detalhes do crime aos ouvintes. A rádio nessa época não tinha viatura, nas emergências usava táxi, mas naquele dia, um amigo do gerente, conhecido como “Chiquinho”, estava na rádio e se ofereceu para me levar com seu “fusquinha” até essa fazenda. Antes de sair liguei para o jornal, que iria circular no dia seguinte. Otávio - já falecido - dono do pequeno tablóide, se entusiasmou, viu ali sua grande chamada de primeira página. Pediu-me que passasse na redação que ele também iria, com uma máquina fotográfica. Eu escreveria o texto. Seguimos para o local do crime. Muita gente reunida, indignação e horror no rosto de amigos e familiares. Repórteres da região estavam chegando, afinal, numa época tranqüila, onde só ladrões de galinhas geravam notícias, esse assassinato era um prato cheio para a Imprensa. Fomos informados que o assassino fugiu após degolar a esposa e que o corpo da jovem mulher já havia sido levado para o necrotério de Franca. Inutilmente tentamos encontrar fotos dos envolvidos nessa tragédia. Todos os documentos estavam com a polícia ou com a funerária. O dono do jornal se impacientou, queria fotos para ilustrar a matéria e não servia apenas aquelas tiradas dos curiosos no local do crime. O jeito seria tentar na delegacia de Franca, junto ao delegado responsável pelo registro do crime. Antes passei um boletim para a rádio. Com a notícia no ar, quando chegamos ao distrito dezenas de pessoas se aglomeravam nas imediações, curiosos em saber mais sobre esse bárbaro homicídio. Furamos a barreira humana e entramos. O delegado era o saudoso Pláucio Pressoto, amigo de meu pai, que tempos depois, de forma trágica, acabou sendo assassinado a tiros por um PM, num café no centro de Franca, após uma discussão banal. O delegado nos atendeu de uma forma amigável. Perguntou sobre meu pai e, antes que outros repórteres entrassem, nos conduziu para uma pequena sala. Explicamos ao delegado que queríamos fotos, mas ele não estava com os documentos da vítima, ainda em poder da funerária. Muito menos do assassino, que fugiu levando tudo com ele. O jornal teria que ser fechado em menos de duas horas, não daria para esperar a funerária com os documentos. Com ar triunfante, o delegado levantou-se da mesa e exclamou: “vou lhes dar a melhor foto”. Em seguida agachou-se e ergueu uma enorme foice bem perto do meu nariz. Cabelos loiros estavam grudados no sangue coagulado na arma do crime e esvoaçam, chegando perto do meu rosto. O cheiro de sangue invadiu minhas narinas. Tentei segurar o fôlego para não respirar, mas minhas vistas se escureceram. Segurei-me na mesa, tentando fugir daquela cena de horror. Empolgado, o delegado não percebeu meu desespero, muito menos Otávio, fotógrafo e dono do jornal, que batia uma foto atrás da outra, contente com o presente que caiu dos céus para sua tão sonhada manchete de primeira página. Com as vistas turvas arrastei-me da sala. Ninguém percebeu. Ou, se perceberam, não deram atenção. Encontrei um banheiro e coloquei tudo pra fora. Lavei o rosto e sai depois de alguns minutos. Na minha mente, aquela foice ensangüentada com cabelos loiros grudados. O cheiro do sangue estava impregnado em minhas narinas, ou seria na minha imaginação? Fugi da delegacia sem me despedir e corri para a redação. Para escrever a matéria foi um drama. Cada linha, uma corrida ao banheiro. Naquela altura, enquanto o dono do jornal lutava para revelar as fotos no seu quarto escuro, vômito e diarréia me atormentavam. Deixei duas laudas na mesa (não consegui escrever mais que isso), dei um grito avisando que havia terminado o texto e corri pra casa. Minha mãe, percebendo que eu havia chegado pálido e abatido, procurou saber o que tinha acontecido. Contei a ela, mas suas palavras de consolo pioraram as coisas, deixaram-me três dias sem comer e com pesadelos todas as noites. Disse ela: “sabe filho, você deve agradecer a Deus o delegado ter lhe mostrado essa foice com sangue e cabelos grudados. Já pensou se ele lhe mostrasse a cabeça da pobre mulher?” Tem hora que mãe não é mãe, concordam?
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*Edward de Souza é jornalista, escritor e radialista. Escreve aos sábados no Divã do Masini e às quintas-feiras no Jornal Comércio da Franca.