J. MORGADO
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Ferroada de Arraia
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Lá estávamos nós "arranchados" em uma casa abandonada na margem direita do Rio Paraguai. Adiante pouco mais de duzentos metros o grande corixão “Paraguai-Mirim”. A paisagem pantaneira era um colírio para nossos olhos. Pela manhã escutávamos os bugios com seus gritos roucos, uma espécie de cantochão. Os aracuãs alegravam a mata com seu canto onomatopaico – Aracuã, cuã, cuã, cuã... Aves multicores pintavam todo o espaço. Depois do café da manhã, feito no fogão a lenha, nos preparamos para uma pescaria de dourados. Iscas artificiais (colheres), varas, carretilhas e molinetes e toda uma parafernália para se fazer esse tipo de pescaria, a de corrico. Os dourados estavam a nossa espera.
Final de agosto. Estava frio. Agasalhados, Eu, Pezão e Paulo aguardávamos o piloteiro preparar o barco. Ao longe, avistamos uma canoa se dirigindo para “nossa casa”. Reconhecemos o velho Justino que já nos havia visitado. Figura estranha e misteriosa esse pantaneiro; beirando os setenta anos, morava em alguma tapera na margem do rio. Barba e cabelos longos, escondidos sob um chapéu maltratado, seus braços raquíticos remavam com energia. Em conversa anterior eu tentara interrogá-lo sobre sua origem e ele, evasivamente fugia da resposta. Naquela época (início da década de 70), esses caboclos moradores nas margens dos rios do Pantanal eram totalmente desprendidos. “Casavam” (ou juntavam) e ai surgia uma numerosa família. Uma choça, um fogão de barro, jiraus, redes para dormir... Era tudo do que precisavam.
Pela manhã, o chefe da família saia com sua canoa, vara de pescar e rodando rio abaixo apanhava dois ou três pacus de bom tamanho. Um seria para a alimentação da família e o outro (os) seria para vender na vila ou cidade. Com o dinheiro comprava o querosene para iluminação, farinha, banha... E assim iam levando a vida modorramente.
Justino apoitou a canoa e com voz tímida nos cumprimentou. Tomou o café que lhe oferecemos e sua atenção se voltou para uma canoa meio enterrada no lodo do rio. Sua intenção era recuperar a embarcação. Calças arregaçadas até o meio da canela rodeou o barco. De repente, um grito de dor! O velho havia pisado uma arraia e por ela sido ferroado. Terrível esses acidentes! Dizem que a dor é insuportável e geralmente duram 24 horas. Ali naquele sertão existem muitas crendices e remédios para se amenizar as consequências ocasionadas pelo veneno expelido pelo ferrão com cerca de 10 centímetros em forma de faca serrilhada. Um desses remédios depende muito da boa vontade de uma mulher. A parte ferida (geralmente o calcanhar) deve ser introduzida entre as pernas (bem junto ao sexo) da voluntária. Dizem que o remédio é “milagroso”. No caso do Justino, o remédio fomos nós. Embarcamos o pantaneiro na nossa “voadeira” e rumamos para o hospital de Corumbá. Os peixes poderiam esperar.
Dias depois, o velho voltou. Agradeceu nossa ajuda e partiu para seu lar. O barco enterrado na lama, ali ficou.
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*J. Morgado é jornalista, pintor de quadros e pescador de verdade. Atualmente esconde-se nas belas praias de Mongaguá, onde curte o pôr-do-sol e a brisa marítima. J. Morgado participa ativamente deste blog, escrevendo crônicas, contos, artigos e matérias especiais. Contato com o jornalista pelo e-mail:
jgarcelan@uol.com.br *J. Morgado é jornalista, pintor de quadros e pescador de verdade. Atualmente esconde-se nas belas praias de Mongaguá, onde curte o pôr-do-sol e a brisa marítima. J. Morgado participa ativamente deste blog, escrevendo crônicas, contos, artigos e matérias especiais. Contato com o jornalista pelo e-mail:
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