Por mais paradoxal que possa parecer, os médicos ao verem o resultado dos meus exames elogiam o meu estado de saúde, dizendo ser invejável para pessoas de minha idade, como se já tivesse ultrapassado a barreira dos 80. Até a pouco, não esperava completar 59 e, agora, anseio para chegar aos 60 – mas sem dor, sem cirurgias, sem sessões de rádio e quimioterapia. Se for considerado o tempo em que infernizei meus pulmões com nicotina de cigarro e o meu organismo com bebidas alcoólicas, até que posso ser considerado um protegido de Deus, o real significado do nome José em grego, conforme me informaram.
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Em toda minha vida, me recordo de ter perdido a batalha, ainda por u
m curto período, só uma vez na juventude. Foi quando contrai malária, durante minha estada nas florestas amazônicas. Como desconhecia os sintomas, acreditava ser ação de alguma virose. Os médicos consultados ignoravam a doença – o governo militar, à época, havia abolido a existência da malária no país. Coube ao médico Newton Brandão (foto a direita), cardiologista especializado em doenças tropicais, que diagnosticasse a malária e me indicasse o remédio correto. Foi a minha salvação.
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Lembrando dessa época, me vem à mente o meu convívio com os índios.
Aprendi muito, a amar a natureza, sua fauna, sua flora. A respeitá-la, sobretudo. O Xingu é um parque nacional que fascina, encanta. Como fascinou e encantou os escritores Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que lá estiveram nos primeiros anos da década 50 do século XX. Na mesma época, o Xingu recebeu a visita de outros escritores, como Jorge Amado, Zelia Gattai e José Mauro de Vasconcelos e, ainda, do rei Leopoldo, da Bélgica, persuadido a não levar para a sua terra um filhote de pássaro por um dos índios, que lhe ensinou: o pássaro nasceu para ser livre.

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MEUS PAIS
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Minha mãe, analfabeta, sempre cuidou da casa, sem se preocupar com ela. Era um tempo em que a mulher era destinada a procriar, criar os filhos, respeitar o marido e servi-lo, como amante e empregada. Viveu resignada e servil. Seu olhar, escuro brilhante, era um mar de ternura. Meu pai, barbeiro de profissão, homem rude, fumante inveterado, apreciava uma boa cachaça, embora às vezes passasse dos limites e, então, tornava-se violento, com a mulher e os filhos.
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Minha mãe morreu dormindo, a cabeça estirada no ombro de minha irm
ã Antonia, no banco de um hospital público municipal, à espera de atendimento médico. Meu pai sofreu para morrer, de embolia pulmonar. Fumou e bebeu até os dias finais de seus 77 anos de vida. Morreu cinco anos depois de minha mãe e, nesse período, aproveitou para trazer mulheres para casa e praticar atos libidinosos – tinha a mania de andar nu pela casa, junto com a companheira. Não tinha a mínima vergonha de se expor...
. Do meu pai, uma triste lembrança. Numa noite, ele flagrou minha irmã
Antonia namorando em um jardim da praça e a trouxe para casa segurando pelos cabelos. Antonia apelava para que ele a largasse. Em casa, minha mãe intercedeu e, em resposta, meu pai lhe deu uma pancada na cabeça, utilizando-se de um pedaço de lenha. A imagem da minha mãe, a cabeça sangrando, agarrada à minha irmã Antonia, jamais saiu de minha lembrança.
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Na próxima quarta-feira, o vigésimo quinto capítulo de "Memória Terminal", do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50.
(Edward de Souza).
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