sábado, 27 de fevereiro de 2010

BOLINHA DE GUDE

Havia chovido torrencialmente. Um homem idoso encapotado e com o guarda-chuva servindo de bengala, à moda inglesa, caminhava lentamente por aquela rua encharcada. Seus pensamentos fervilhavam de lembranças nostálgicas. Vivia naquele bairro desde criança e as casas antigas com grandes quintais, deram lugares a grandes sobrados e edifícios de apartamentos. Uma linha do metrô passava exatamente onde outrora havia morado e brincado. Onde estará o Lando, o Buzina, o Vicente... Os amigos de outrora? Vez em quando tivera notícias de um, de outro... Soube que o Luizinho morrera de forma trágica e que o Pedro virara doutor, um médico de renome...

Aquela esquina... Hã, aquela esquina... Quantas travessuras. Muitos foram os baldes d’água que o dono do armazém jogara nos garotos barulhosos que ali defronte jogavam bolinha de gude.

O empório do senhor Felisberto era o único em um raio de muitas centenas de metros e as luzes iluminavam o palco ideal para as brincadeiras da época. Mão-na-mula, esconde-esconde, bafa, cirandinha – “ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar, vamos dar uma volta, volta e meia vamos dar...” Todas essas vozes infantis com e mais os gritos da molecada jogando bolinhas. A forma preferida era a de percorrer quatro buracos, cada um com a distância de quatro palmos. O caminho deveria ser percorrido duas vezes. Quem conseguisse fazer o percurso em primeiro lugar ganhava a partida.

Bolinhas de gude... A mente do velho agora começou a viajar. Foi além da imaginação. Por analogia, começou a comparar as bolinhas de então com a vida dele e de seus amigos. Lembrou-se de uma “melosa”, sua preferida, toda colorida de branco e azul. Por onde andará? Lembrava-se de tê-la perdido para o Vicente, que por sua vez perdeu-a para outro garoto. Depois a perdeu de vista. Afinal, não foi assim que aconteceu? Cada uma daquelas bolinhas tomou um rumo. Cada um daqueles amigos seguiu um destino. Por onde andarão?

Certa ocasião, seu irmão, quatro anos mais novo, todo choroso chegou-se e disse que um garoto havia lhe rapado todas as suas bolinhas. Incontinenti, acompanhou o caçula e desafiou o tal para jogar. Triângulo foi à modalidade escolhida. Fazia-se o desenho de um triângulo na terra batida e ali a partir das pontas para dentro “casava-se” as bolinhas. O jogo consistia em “ticar” as esferas coloridas para fora daquele espaço.

Conseguira recuperar as bolinhas que o maninho havia perdido e “rapar” o adversário. Seu irmão saltitava contente. Seus olhos irradiavam alegria e admiração pelo mano mais velho.

Uma “bolinha” que já se foi!

Com lágrimas nos olhos, o velho continuou sua caminhada. Olhava atento o casario. Em meio às construções modernas, uma casa antiga aqui, outra acolá. Lembrava-se quem havia morado em cada uma delas. Dona Olívia, a benzedeira, uma portuguesa, fora pioneira naquele bairro. Atendia a todos que a procuravam, não importava a hora – dia e noite. Hã, naquela casa, meio assobradada com porão, outro casal de portugueses. A mulher, Dona Maria era a parteira do bairro. Poucas crianças naquela região não haviam passado pelas mãos hábeis daquela senhora. “Bolinhas de gude” que rolariam pelo mundo...

Continuando a caminhar, sentiu vontade de urinar. Buscou um local tranqüilo e longe de olhares curiosos. Enquanto satisfazia sua necessidade fisiológica começou a sorrir. Sorria por lembrar-se que naqueles tempos longínquos, naquele bairro poucas casas tinham sanitários ou banheiros em seu interior. As casinhas como eram chamadas ficavam no fundo do quintal. O urinol era a privada da noite. E isso aconteceu apenas ontem...

Ontem... Os meninos correndo pelas ruas, trocando figurinhas ou tampinhas de garrafas... Chilrando como filhotes de andorinhas a esvoaçar em seus primeiros vôos. Bolinhas de gude a jogar bolinhas de gude. Espalhando-se pelo mundo como as brilhantes esferas coloridas.

Onde andará aquela melosa?
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*J. Morgado é jornalista, pintor de quadros e pescador de verdade. Atualmente esconde-se nas belas praias de Mongaguá, onde curte o pôr-do-sol e a brisa marítima. J. Morgado participa ativamente deste blog, para o qual escreve crônicas, artigos, contos e matérias especiais. Contato com o jornalista pelo e-mail jgarcelan@uol.com.br
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