quarta-feira, 13 de outubro de 2010




Minha família é tradicionalmente católica. Meus avós e meus pais sempre foram da religião católica, embora não praticantes. Segui os passos de meus pais e meus irmãos mais velhos até a adolescência. Analisando o meu comportamento na infância, acredito que nem nos meus primeiros anos fui de confiar muito em religião. Tanto que, logo após a cerimônia em que fui batizado, sai com uns colegas para roubar abacaxi numa chácara nos arredores de Bálsamo. Anos mais tarde, talvez mais por curiosidade, frequentei centros de umbanda, participei de sessões espíritas e estive em templos evangélicos. De todas, a que mais me atraiu foi o espiritismo, talvez pelo que essa religião tem de mágico ao pregar a interrelação de pessoas vivas com as mortas. Só que das sessões das quais participei, nunca tive o privilégio de manter contato com nenhum espírito. Pode ser por falta de preparo, não sei.

Voltei a questionar a religião depois que a Eva, católica desde criança, se tornou evangelista, já adulta, com os filhos criados. A sua fé é tamanha que chega a causar espanto. Para ela, Jesus Cristo cura todos os males. Nesse meu período de recuperação, ela mantivera um contato diário comigo, via correio eletrônico. A maior parte das mensagens enviadas era bíblica, mostra que o homem deve sempre ser corajoso, jamais esmorecer diante das dificuldades e manter sempre a esperança de que um Ser Superior o quer bem e o livrará de todos os males. Chegou inclusive a me mandar um vidro contendo mel ungido. Esse material, abençoado, é para ser colocado no local afetado pela dor e, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, pedir que a dor desapareça.

Uma pessoa com um tumor maligno infiltrado na cabeça, por mais que deseja, não consegue continuar com um procedimento normal. É induzido a se apegar a tudo com o significado de esperança de cura. Essa a principal razão que me leva a seguir as orientações da Eva. Geralmente à noite, sozinho, coloco a unção na direção do tumor e peço o seu desaparecimento e a devolução de minha saúde. Reconheço, no entanto, que se Ele é realmente onipresente, onisciente, sabe do pouco de fé existente em mim. Reconheço, também, que se for curado, não terei pudor em dizer, a quem me perguntar, que houve a intercessão de Nosso Senhor Jesus Cristo, que orientou os médicos responsáveis pelo meu tratamento.
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Ilca, vida e amor

A Ilca me acompanha desde os seus 18 anos de idade. Quando a conheci no parque, durante um festival de aperitivos, jamais imaginaria que aquela menina seria a minha companheira por toda a vida. Posso dizer que devo a ela o fato de hoje não ser um molambo a perambular pelas ruas ou um indigente internado em algum asilo de loucos. Não esmoreceu nem no auge de minha fase de alcoólatra. Suportou meu bafo podre de cachaça sem nunca reclamar. Também nunca interferiu em minha vida para que eu parasse com a bebida ou com o cigarro. Sempre me deixou ser um homem livre em minhas decisões. Caso ela tivesse me abandonado durante meus longos períodos de desemprego e aumento do consumo de bebidas alcoólicas, certamente não teria em quem me apoiar.

Costumo dizer que a Ilca é, para mim, cinquenta quilos de amor e um metro e cinquenta de coragem, referindo-me ao seu peso e à sua estatura. Uma pequena grande mulher, que aprendi a admirar e a amar mais e mais a cada ano em que passamos juntos. Ao contrário de mim, ela se apega ao emprego. Nesse mais de trinta anos em que a conheço, só trabalhou em três locais: em uma metalúrgica, durante quase quinze anos, em uma concessionária revendedora de veículos, o mesmo período e, depois de aposentada, continuou na ativa, como secretária executiva, sua profissão, em um sindicato patronal.

Com os recursos obtidos com o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço conseguiu dar entrada na compra da casa onde moramos, financiada que foi pela Caixa Econômica Federal. O financiamento era por vinte anos – em menos de cinco ela quitou o imóvel que, agora, ela está modificando e deixando-o como sempre sonhou seria a sua casa.

Mesmo querendo esquecer, no início, eu a hostilizava, tentando com esse procedimento testar se ela realmente me amava. Ela, resignada, percebia meu estado alcoólico e fingia nada ter ocorrido. Poucas vezes discutimos e, quando houve discussão, foi por motivos banais. Apesar de minha fama de conquistador, mulherengo, confiou e confia em mim. Nunca me atanazou a vida por minhas viagens nos finais de semana com destino a Ubatuba, a Iguape, ou a outros locais onde poderia levar outras mulheres. Nas poucas vezes em que adoeci, ela foi a primeira a providenciar assistência médica. A mais dolorosa e angustiante foi a constatação de câncer em minha garganta. Estupidamente, a comuniquei por telefone o diagnóstico da doença.

Nunca me deixou só no hospital. Quando não podia me fazer companhia, arrumava alguém que pudesse me dar assistência. Desta última vez, se empenhou de maneira fantástica em conseguir o remédio para o meu tratamento, produzido na Alemanha, que o plano de saúde negava-se a custear. Contou com a ajuda valiosa da advogada Livia Faé Valejo, que obteve liminar para a liberação do medicamento. Um dia, ainda, escreverei um livro somente sobre a Ilca e a sua vida ao meu lado. Acredito que será uma linda história de garra, desprendimento e muito, muito amor. Se me perguntarem o que a Ilca significa para mim, eu direi sem vacilar: ela representa a vida, ela representa o amor, no mais amplo e sublime sentido que essas palavras possam ter. Ilca, vida e amor.
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Na próxima quarta-feira, o vigésimo sétimo capítulo de "Memória Terminal", o penúltimo escrito pelo jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008. O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50. (Edward de Souza).
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