sexta-feira, 8 de maio de 2009

UM SORRISO QUE ESPANTA E DENUNCIA

J. Morgado
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O Menino na calçada
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Diz o poeta que "o sorriso da criança anuncia ao mundo que Deus nos ama!" É a verdade! Principalmente se o sorriso partir de uma criança sadia, corada, rodeada de flores e bem vestida, como nas folhinhas de fim de ano! Se as possibilidades financeiras forem boas para ótimas, então a criança terá sempre um sorriso muito grande, além de inocente, franco, alegre, saudável e gratificante. Mas se a criança for pobre, filha órfã de pais vivos, se for a oitava de uma série de nove; se estiver doente, em consequência da má-alimentação que tem; se for raquítica, esquelética, subnutrida, cheia de manchas na pele, mal vestida e cheirando a suor e urina e, com fome, o seu sorriso será triste, melancólico, desanimador. Será um sorriso que amedronta, espanta e denuncia!
Lá estava eu, fazendo uma fezinha na lotérica. O prêmio estava acumulado e, como todo bom brasileiro, que ainda acredita em contos da carochinha, arriscava um palpite que havia anotado dos finais das placas dos carros estacionados nas proximidades. Depois de gastar os valiosos reais, fiquei batendo papo com o dono da casa de apostas. Jogando conversa fora, observava um garoto que na outra calçada, cujo meio-fio servia de estacionamento, trabalhava febrilmente com uma garrafa de água e um pano, pedindo aos motoristas que deixassem limpar os vidros dos veículos em troca de uma ou mais moedas. Alguns aceitavam de bom grado, via-se isso pela expressão de seus rostos. Outros, aborrecidos, aceitavam de uma maneira forçada, para não ficarem com a consciência pesada, pois o aspecto do menino era realmente deplorável. Alguns, talvez a maioria, arrancavam com o carro falando palavrões ou simplesmente dizendo não. Quando isso acontecia, o garoto sentava-se na calçada mostrando em sua face o aborrecimento e, provavelmente, o rancor e a revolta encarcerada dentro de seu ser. Curioso, e porque não dizer, tocado pela cena, atravessei a rua e tentei entabular conversa com o garoto. Depois de alguns instantes, entre hesitante e receoso ele me disse com palavras trôpegas: “pois é seu moço, ainda não ganhei nada, nem pra tomar um café reforçado”. Perguntei então qual a idade dele: “não sei não seu moço”, foi a resposta. Perguntei ainda onde ele morava. Respondeu-me que residia muito longe ao pé da serra, junto à mãe que estava muito doente. Com dificuldade entendi que o garoto era o único sustento da família e além daqueles reais, amealhados durante as horas que ali ficava “flanelando” os automóveis estacionados, conseguia alguns alimentos de algumas almas caridosas que de vez em quando encontrava em seu caminho. Perguntei ao menino se ele tinha alguma ajuda da Prefeitura, ou seja, do Serviço Social, e ele respondeu: “não sei o que é isso não seu moço!” Conversando mais um pouco com aquele garoto, soube que ele não tinha irmãos.
Na verdade, apesar de seu aspecto raquítico, o menino aparentava ter mais ou menos dez anos de idade. Ainda curioso e tocado pela situação, convidei-o a ir até a lanchonete do outro lado da rua e ali servir-se de um lanche. O “flanelista” não se fez de rogado e incontinenti me acompanhou. Comeu alguns salgados, tomou um refrigerante com sofreguidão e disse: “brigado seu moço”. Em seguida atravessou a rua de volta ao estacionamento onde, com mais vigor, retomou o seu “ganha-pão”.
No entanto, como um aposentado não tem muito lá o que fazer, fiquei por ali conversando com pessoas conhecidas que ia encontrando. O assunto quase sempre, depois dos cumprimentos de praxe, era a situação do garoto flaneleiro e de outros mais na mesma situação que circulavam pelas ruas ora carregando papelão, ora procurando latinhas de alumínio ou outro material qualquer para poderem sobreviver. Depois dos bate-papos, fui atender outros afazeres, que me levaram algum tempo, duas ou três horas, talvez. Quando eu estava em outra rua, percebi em uma escadaria que várias crianças cercavam uma mulher ainda de aparência jovem e forte. O tal do “flaneleiro” fazia parte da turma. Ao reparar em cada uma das crianças, seis ao todo, constatei que eram todos mais ou menos parecidos uns aos outros. Aproximei-me e procurei entabular conversa com àquela família. O garoto, meu conhecido, ficou todo sem jeito ao me encarar, pois pode constatar que a “a mentira tem pernas curtas”. Havia me contado uma história que acabava de desmoronar diante do fato presente. Mas, não dei importância ao garoto e conversei com a mulher, perguntando a ela porque em vez de esmolar para sobreviver não procurava um trabalho.
Depois de muito hesitar, contou-me a seguinte história. Disse que havia sido abandonada pelo marido e como não sabia ler e escrever e não tinha nenhuma profissão, além de morar em um barraco sem nenhum recurso e com seis filhos para criar, não viu outra solução a não ser mendigar ou colocar seus filhos nas ruas para ganhar o sustento de cada dia. Mas o caso não acaba aí. O maior problema, é que aquela mulher estava infectada com o vírus HIV, ou seja, Aids, e por esse fato vivia com o “coração na mão” usando suas próprias palavras. E o pior de tudo é que não tinha nenhuma ajuda ou iniciativa para buscar quem a ajudasse, pois a ignorância, aliada a extrema pobreza, previa um futuro bem negro, não só para àquela criatura, como para seus filhos, onde estava incluído o menino da calçada.
A conclusão a que chegamos é a da que temos participação direta neste episódio, participação negativa pela omissão, pela indiferença com que temos agido, pela frieza com que temos contemplado as coisas e passado adiante, sem nos determos nos problemas que originam estas imperfeições e injustiças e sem pararmos para tentar, pelo menos tentar, soluções que o caso exige.
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*J. Morgado é Jornalista, pintor de quadros e pescador de verdade. Atualmente esconde-se nas belas praias de Mongaguá, onde curte o pôr-do-sol e a brisa marítima. Morgado escreve quinzenalmente neste blog, sempre às sextas-feiras. E-mails sobre esse artigo podem ser postados no blog ou enviados para o autor, nesse endereço eletrônico: jgacelan@uol.com.br
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