quarta-feira, 2 de junho de 2010


"Não posso negar que o Prêmio Esso, pela importância no jornalismo brasileiro, mudou minha vida e serviu, durante anos, para sustentar o meu nome, inclusive em minhas fases mais agudas de decadência, moral e física, causadas pelo abuso de bebidas alcoólicas. De início, causou surpresa, tanto pela minha idade – era considerado jovem, com 24 anos, para ganhar o Prêmio Esso principal e, também, pelas reportagens terem sido julgadas por uma comissão integrada por escritores e publicitários. O Pasquim, um jornal alternativo com sede no Rio de Janeiro, chegou a ironizar propondo que os concursos literários fossem, agora, julgados por jornalistas".
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Fiquei lisonjeado, anos mais tarde, com um artigo do escritor Adonias Filho, um dos integrantes da comissão julgadora, publicado no livro “25 Anos de Imprensa no Brasil – Prêmio Esso de Jornalismo”, quando ele escreve: "mas, até que estabeleça esse acampamento às margens do rio Peixoto de Azevedo, a expedição se movimenta, dias após dias, picada a picada, sob o testemunho do repórter José Marqueiz. Não perde um só detalhe e, embora minucioso, por isso mesmo, reprojeta a viagem em todos os acidentes. A primeira impressão é como se um Jack London estivesse a escrever, é a de que ele – o repórter – visualiza a selva nos cenários e nos perigos. A segunda impressão é a de que, seja qual for o impulso imaginativo, jamais trairá a verdade”.
Prossegue: “A impressão definitiva, porém é a de que – assim na selva e a esperar o índio para o contato – José Marqueiz nos faz recuar até o século XVI. A nossa reação psicológica, em verdade, não deve ser muito diferente da de um Jean Lery ou de um Hans Staden”.
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Com o prêmio, eu que até então caíra no anonimato e vivia esquecido em Santo André, acabei despertando o interesse dos principais jornais e revistas do país. Estavam interessados em me contratar e ofereciam bom salário. Talvez por estar mal orientado, recusei a todos. Cometi um grande erro, é verdade. Culpo, hoje, essa minha atitude à indiferença com a estabilidade e o fato de não saber conviver com a colocação do meu nome entre os grandes da imprensa brasileira.
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Tanta é efêmera a glória que, meses depois, estava desempregado e, devido ao meu jeito de agir, as portas que antes se abriram me oferecendo nova oportunidade, haviam se fechado. Eu as fechara, minha inabilidade em prorrogar uma decisão reduzira meus horizontes e eliminara minhas perspectivas de se fixar numa grande empresa de comunicação e continuar trabalhando para ganhar cada vez mais prestígio. Diante dessa situação, acabei por fazer umas reportagens estrambólicas para o jornal Noticias Populares e contribui, dessa forma, para a criação do Bebê-Diabo, um fenômeno inventado que acabou influenciando o imaginário popular. Era uma farsa criada por um grupo de jornalistas comandados por Ebrahim Ramadan, diretor de redação do jornal, e, como chefe de reportagem, Lázaro Campos, com quem já havia trabalhado no News Seller (atual Diário do Grande ABC).
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Até hoje, passados mais de trinta anos, o bebê-diabo ainda é lembrado. Tanto é verdade que, em março de 2007 – as reportagens foram publicadas na década de 70 do século passado – no Observatório de Imprensa, registrou, na internet, artigo assinado por Bruno Brasil, com o título “Paira no ar um cheio de enxofre”, abordando o assunto. Assinala: "tudo nasceu a partir de rumores de que em São Bernardo do Campo e em Lençóis Paulista teriam nascido crianças deformadas, parecidas com diabos. Em 11 de maio de 1975, a manchete do NP seria: “nasceu o Diabo em São Paulo", assinado pelo jornalista Edward de Souza. Falta de assunto, jornalistas alegaram mais tarde. Se a manchete “Podre o pé do Papa”, do Diário da Noite de São Paulo, é a estrela no Hall da Fama do sensacionalismo na imprensa brasileira, o causo Bebê-Diabo é uma supernova”.
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E um trecho que me atinge diretamente: “possuído por uma entidade malévola, provavelmente estava o jornalista José Marqueiz, um dos criadores do bebê e autor das “reportagens”. Depois de passar pela redação do NP, ele se mudou para Manaus, onde passaria a infernizar os leitores com outra notícia inventada em série, a do Bebê-peixe. Vale ressaltar que, segundo a matéria de Movimento, Marqueiz ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo em 1974 (!)”. O jornalista Bruno Brasil, que não conheço, foi infeliz ao afirmar que eu sou o autor da série de reportagens. Fiz apenas algumas reportagens - free-lance - e fui o responsável pelo suicídio do Bebê-Diabo no encontro das águas dos rios Negro e Solimões. Outro deslize: fiz as reportagens depois de ter ganho o Prêmio Esso e não antes. Ao final, gostaria de saber o porquê ele, Bruno Brasil, colocou um sinal de exclamação ao citar essa minha conquista.
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Depois dessa série sobre o Bebê-Diabo, fiquei mais alguns meses em Santo André, desempregado, ganhando algum dinheiro com colaborações esporádicas. Continuava indo para São Paulo, procurando emprego, mas sentia que eu já era um nome esquecido ou renegado, talvez por ter, logo no início, rejeitado as ofertas de emprego. Sem nada a fazer, bebia e bebia cada vez mais, contribuindo assim para perder ainda o pouco de credibilidade que me restava. Já era visto como um bêbado, irresponsável, sem que os editores pudessem contar para a realização de um trabalho sério. Em vez de me resguardar, expunha-me sem nenhum escrúpulo.
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Mesmo quase caído, consegui emplacar duas grandes reportagens na extinta revista Visão, que seguia mais uma linha dirigida a assuntos econômicos. Mas agora, com uma nova direção na redação – o jornalista Ewaldo Dantas Ferreira, que trouxera vários colegas do Jornal da Tarde – abria espaço para uma diversidade de assuntos. As duas reportagens que fiz ganharam capa da revista, fato que mostrava que eu poderia ainda me reabilitar. A primeira abordou a situação da arte no Brasil, tendo como âncora o estado em que se encontrava os murais pintados por Eméric Marcier em uma pequena capela de Mauá, um dos sete municípios do ABC Paulista. Consegui convencer da importância da matéria ao mostrar artigo publicado em 1952, na revista Habitat, em que Pietro Maria Bardi, um dos fundadores do Museu de Arte Moderna de São Paulo, escrevera: “os afrescos murais pintados por Emeric Marcier na pequena capela constituem a mais bela, a mais expressiva e mais importante obra mural religiosa existente no Brasil. Os afrescos da lavra do pintor Marcier estão condenados ao desaparecimento... Os afrescos de Marcier assumem, para a minguada história da arte brasileira, uma importância sem precedentes. Trata-se de um ciclo de pinturas que ilustram temas do Novo Testamento, com uma paixão exagerada, talvez exasperada, mas sem dúvida uma verdadeira e vivida paixão”.
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Sem dúvida, essas considerações convenceram o então editor de Artes da revista, o jornalista Vladimir Herzog – este seria assassinado meses depois nos porões da ditadura militar – que me autorizou a fazer a reportagem, destacando outros repórteres para ampliar a cobertura do tema. Eméric Marcier, que faleceu em 1991, em Paris, possuía um ateliê na capital francesa e uma fazenda em Barbacena, em Minas Gerais. Ele realizou os murais em Mauá entre os anos de 1946 e 1947, atendendo convite do padre Eduardo Roberto Batista. Antes, já havia participado de três exposições individuais, uma no Rio de Janeiro, e três coletivas em Milão e Londres.
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Eméric Marcier – jamais poderia esquecê-lo – foi quem me recebeu naquela noite em seu apartamento na rue de Plantes, em Paris, ficou com vários exemplares da revista Visão, com ele na capa, e simplesmente me dispensou, entregando-me um mapa da capital francesa. Sem saber para onde ir ou ficar, acabei me hospedando em um pequeno hotel em Montparnasse. Salvo engano, no dia seguinte retornaria para Lisboa, de trem.
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A segunda reportagem que ganhou a capa da Visão se constituiu nas memórias dos irmãos Cláudio e Orlando Villas Boas. Para desenvolver esse trabalho, fui designado para ir até o Posto Leonardo Villas Boas, tendo como companhia o fotógrafo Guilherme Guimarães. Ao chegarmos ao Xingu, Orlando não se encontrava e, Cláudio, ficava distante, na aldeia dos Txucarramães, à margem esquerda do rio Xingu. Por alguns dias ficamos rondando as aldeias localizadas em volta do parque, acompanhando os índios em suas caçadas e pescaria e praticando a paciência. Quando Orlando aterrissou no posto, começamos a gravar as suas memórias. Foi um relato demorado, longo, que, depois, tive que resumir para ser editado. Por não contar com a participação do irmão Cláudio, a matéria não saiu completa, uma vez que só tinha o testemunho de Orlando. Durante a estada no Xingu, há dias em que ficava a pensar nas duas mulheres que havia deixado em Santo André. A Eva, em companhia de meus dois cachorros. O que estaria ela fazendo? Nem sequer fazia idéia. Apenas eu sentia que, na solidão da selva, o amor cresce infinito no coração do homem.
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Assim, depois das duas grandes reportagens para a revista Visão, fiz a minha rápida viagem a Lisboa e Paris, com a ajuda da equipe da revista, mas por iniciativa do jornalista Carlos Brickmann. Devo ter recebido a fundo perdido o equivalente, hoje, a mil dólares, diretamente das mãos de Ewaldo Dantas. Usei a maior parte dessa verba para pagar dívidas.
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De volta ao Brasil, ainda desempregado, aceitei convite do jornalista Juarez Bahia, editor nacional do Jornal do Brasil, e segui para Manaus, como correspondente no Amazonas. Por princípios ou por vergonha, omiti do Bahia a minha precária situação financeira. Na sucursal do Jornal do Brasil, em São Paulo, peguei a passagem aérea. O jornalista. Rubens Rodrigues dos Santos, do Estadão, redigiu um bilhete, a mão, endereçado a um empresário de Manaus, me solicitando ajuda, caso eu necessitasse. Paulo Markun, também do “Estado”, chegou a me oferecer uma espécie de adiantamento, o suficiente para deixar com minha mulher fazer as compras para alimentação por um mês. E, assim, parti para Manaus. Só e quase sem dinheiro...
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Na próxima quarta-feira, o oitavo capítulo de Memória Terminal, do jornalista José Marqueiz, Prêmio Esso Nacional de Jornalismo, falecido em 29/11/2008.
O Prêmio Esso de Jornalismo é o mais tradicional, mais conceituado e o pioneiro dos prêmios destinados a estimular e difundir a prática da boa reportagem, instituído em meados da década de 50, num contexto desfavorável à marca do patrocinador, então associada à campanha contra a nacionalização do petróleo do qual participavam várias multinacionais. Originalmente chamava-se Prêmio Esso de Reportagem e contemplava apenas a mídia impressa, mesmo a Esso possuindo um programa radiofónico (O Repórter Esso), mais tarde exibido também na televisão, o mais importante informativo eletrônico da época. A partir de 2001 foi criado um prêmio Especial de Telejornalismo. Também há premiações regionais, instituídas desde a segunda versão. (Edward de Souza/ Nivia Andres) Arte: Cris Fonseca.
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