domingo, 29 de março de 2009

AS HISTÓRIAS DAS REDAÇÕES DE JORNAIS

Exclusivo
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A frustração na
Copa de 70

Parte XII
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Milton Saldanha
Memórias

Capítulo IV

A coluna social naquela época era diferente de todo o resto e destinada a fazer média com os abonados da região, a turma que paga os anúncios. Serafim Vicente nunca tinha pisado num jornal quando veio para o Diário exercer essa função. Não tinha feito faculdade de jornalismo. Escrevia coisas de arrepiar, e com erros de grafia, de concordância, o diabo. Se as bobagens saíssem deixariam o jornal muito mal. Eu ficava enlouquecido e xingava secretamente o Fausto pela contratação. Mas aos poucos fomos pegando estima pelo Serafim, que era um cara super legal, solidário e principalmente alegre. A redação, que já era uma zona, com o Lázaro berrando besteiras que faziam a gente chorar de tanto rir, ficou ainda mais alegre com o Serafim e aquele seu jeito... Uma vez ele sentou inesperadamente no colo do Rubem, deu-lhe um chupão no pescoço, Rubão ficou arrepiado. Pra que. Serafim saiu berrando pela redação, eufórico: “O secretário ficou todo arrepiado! O secretário ficou todo arrepiado!” Todos nós morrendo de rir, e o Rubão todo sem jeito, sem saber se também ria ou ficava puto da vida. Era tudo hilariante. Com a estima pessoal, passei a ser mais tolerante com a coluna do Serafim, mas sempre cortando os excessos, principalmente quando a puxação de saco passava dos limites aceitáveis. Um dia, querendo fazer gracinha, ele chamou a colônia italiana de “italianada”. Cochilei, deixei passar. O Fausto ficou furioso. Marcou com seu famoso lápis azul, com o qual pinçava na edição nossos erros de cada dia, nunca poucos. E a gente se segurando para não rir. O que aconteceu com Serafim depois daquela primeira fase no Diário, aqui não interessa. Não me cabe julgar nada. Fica minha lembrança apenas de um tempo bom, divertido.
O Cássio Loredano já era um gênio no desenho, mas não acreditava. Todo mundo falava que ele deveria se dedicar ao desenho, mas queria é ser repórter. Pedrão era fã assumido do Cássio, para ele, então, o melhor repórter do mundo. Um dia caiu a ficha, partiu para ilustração, arrasou. O Hildebrando Pafundi era o mais calmo da redação. Certo dia explodiu a Câmara de Santo André. Acho que foi tubulação de gás, nem lembro. Mas explodiu. Todo mundo excitado, (teria sido atentado?), e o “Pafa” tranquilo. Romão, do esporte, era um figuraço. Morava na redação, tinha um quartinho nos fundos da casinha. De vez em quando o Cássio fazia alguma charge e usava o Romão como personagem, com seu vasto e desordenado bigode. Como espécies atuantes daquele alegre zoológico, sobrava também para nós, eu e Rubão. Compramos um Gordini usado, em sociedade, aproveitando uma grana legal que embolsei ao vencer um concurso de reportagens natalinas. A gente brigava, porque os dois queriam dirigir. O pessoal morria de rir. Faziam piadas conosco. Nunca entendi que graça tinha isso... Até as broncas eram divertidas. Um dia Pio chegou super atrasado. Rubão começou tremenda bronca. Pio explicou: “Fui trepar”. “Ah, bom”, respondeu Rubão, encerrando o assunto.
Num dia de verão, muito quente, inventamos uma matéria no Guarujá. Pretexto para ir à praia. Já estava combinado e todo mundo levou calção para o jornal. Lotamos a coitada da Rural e descemos a serra, pela manhã cedo, para voltar lá pelas duas da tarde. Pedrão fez algumas fotos de supostas gostosas, para justificar o “trabalho”. Curtimos a praia, bebemos cerveja, foi super divertido, por estarmos em turma e pelo sabor da traquinagem com o carro e a gasolina do jornal. Na volta alguém cascateou um texto sobre o dia de forte calor e outras bobagens. O Fausto chegou e ficou olhando desconfiado nossas caras de safados, com os cabelos desalinhados e ainda úmidos, gente lavando os pés na torneira do jardim. Todo mundo se entregando. Mas deixou barato, não falou nada, com certeza para não arranhar nossa autoridade perante a equipe, pois o próprio Rubem fora o mentor da “pauta”. Era tudo uma lua de mel? Claro que não, somos de carne e osso, com virtudes e defeitos, rejeições e preferências afetivas. Mas, uma coisa posso garantir: em nenhum outro momento de toda a minha carreira desfrutei de um ambiente tão gostoso na redação. Teria ainda muitas histórias, mas aí isso aqui vira livro. E bem que eu gostaria. Antes de encerrar, contando nossa, digamos, inusitada saída do jornal, vou relembrar algo inesquecível. Foi nossa edição extra especial de cobertura do final da Copa do mundo de 1970, no México. Foi a primeira vez em que a TV transmitiu a Copa ao vivo. A transmissão por satélite era uma novidade. O Brasil, como todo mundo sabe, tinha um time invencível e era franco favorito. Resolvemos soltar a edição extra. A idéia era lançar o jornal pronto, nas mãos de um batalhão de jornaleiros, meia hora após o fim do jogo, no máximo. Os moleques, mais de cem, iriam com os jornais nos braços para os burburinhos dos festejos nas ruas. Durante a semana inteira fizemos o jornal, com matérias retrospectivas, etc. Na capa pré-montamos um jogador erguendo a taça. Detalhe: usava mangas compridas, era o que a gente tinha em arquivo, eles jogaram com mangas curtas. Dane-se, decidimos, e fizemos a montagem com outro rosto. O que hoje, com Photoshop, seria bico, naquele tempo foi uma verdadeira engenharia, obra de artesões. E montamos até o texto da matéria de capa, que já tinha manchete pronta, com buracos para detalhes do jogo, resultados, etc. Ou seja, em menos de dez minutos a gente finalizaria tudo, baixaria para a oficina, que já tinha o jornal todo pronto, faltando só a capa, e... Seria um sucesso! Ah, e teríamos fotos do jogo, dos gols, em primeira mão. Pedro Martinelli, o Pedrão, colocou um tripé na frente da TV e fez as fotos dali mesmo. Reveladas e ampliadas, pareciam radiofotos, muito usadas na época. Quebravam o galho perfeitamente. Durante a semana ele havia feito testes, avaliando os resultados, estudando o melhor ajuste da máquina, tudo. A redação toda em volta, torcendo, gritando, e o Pedrão ali, clicando e também torcendo. Dá para esquecer? Quando o jogo acabou, o batalhão de jornaleiros estava na porta da oficina, aguardando. Mal o juiz apitou e mergulhamos nas velhas Olivetti, teclando com fúria. Todo mundo correndo, parecia fechamento de jornal em TV. Até o boy estava instruído a seguir correndo para a oficina, no sentido literal, com a lauda do texto. Alguém imagina o que aconteceu? Pois é, a luz apagou geral no bairro. Ficamos sem energia. Desesperados, e sem energia para mover as possantes linotipos, o chumbão, como eram chamadas, porque produziam textos em blocos de chumbo, que caiam quentes num cesto, tinham que esfriar e entrar na paginação sobre uma placa metálica. Todo aquele esforço de uma semana, toda aquela correria, tremendo esquema de mobilizar jornaleiros numa época em que isso não existia mais, as vendas eram em bancas, muita adrenalina para... Sermos derrotados por um pedaço de fio. A luz demorou quase uma hora para voltar. E ainda faltava rodar a capa. Não adiantou ligar desesperadamente para a Cia. de força. O jornal foi para as ruas, mas sem o impacto dos primeiros minutos, para surpreender o povo, como tínhamos planejado nos mínimos detalhes. Creio que nunca, na história do Diário, tenha acontecido algo tão frustrante. O Diário não merecia, muito menos nós, tão focas e tão sonhadores.
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Não percam nesta segunda-feira o último capítulo dessa série escrita pelo jornalista Milton Saldanha nesse blog. Agentes do DOI-CODI, armados com pistolas e metralhadoras, invadem o apartamento do jornalista em São Paulo. Seu irmão Rubem dormia num quarto do fundo e foi acordado com o cano de uma metralhadora no rosto. Foram presos. o Brasil vivia um dos momentos mais duros da ditadura militar, governo Médici, com tortura, censura e repressão por toda parte, em resposta à luta armada das organizações de esquerda.
( Edward de Souza)
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Milton Saldanha, 63 anos, gaúcho, torcedor do Inter, começou no jornalismo aos 17 anos, em Santa Maria (RS). Trabalhou na grande imprensa de Porto Alegre e de São Paulo. Foi da Folha da Manhã (RS), Diário do Grande ABC, Agência Estado, Estadão e JT, Rede Globo, Rádio Jovem Pan, Última Hora (com Samuel Wainer), entre vários outros veículos. Foi também assessor de imprensa da Ford, do IPT e do Conselho Regional de Economia. Tem um livro publicado, "As 3 Vidas de Jaime Arôxa"; participou de uma antologia de escritores gaúchos; um livro pronto e ainda inédito, "Periferia da História", onde conta de memória 45 anos da recente história do Brasil sob um ângulo totalmente inédito; trabalha num livro sobre Reforma Agrária. Pouco antes de se aposentar fundou o jornal Dance - www.jornaldance.com.br - que já tem um filhote regional em Campinas, e que neste 2009 completa 15 anos.